sábado, 24 de abril de 2010

O VOO


Voltei em um voo da VARIG de um congresso em Portugal, no ano, dia e hora do jogo final da Copa do Mundo, Brasil versus França, aquele jogo, jamais esquecido em nossa história. Um avião daquele tamanho com menos de um terço de passageiros. Talvez todos portugueses, quem sabe. Brasileiro, mesmo não fanático por futebol, geralmente não perde os jogos da Copa, principalmente a final. Eu faço parte da exceção, para confirmar a regra, e, desta vez, para viver o vôo mais emocionante da minha vida e uma aventura amorosa digna de nota.

Acomodados todos, aeronave nos céus, eu com assentos à vontade para refestelar-me, preparava-me para aproveitar a tranquilidade de um clássico vôo internacional.

Alcançadas as alturas, ouvimos a simpaticíssima e atraente voz do comandante:

- Caros passageiros, aqui fala o comandante X... bem-vindos...

E seguiram-se os indicativos de praxe aos quais já nos acostumamos como passageiros: altitude e demais informações. Logo após, no entanto, veio o convite:

- Como temos poucos passageiros, nesse dia tão especial para o Brasil, convido os interessados a visitarem a cabine e para isso, peçam orientação junto a nossos comissários de bordo.

Eu nunca tinha visto um painel, muito menos uma cabine e não tinha um programa especial para fazer, a não ser ler meu livro. Daria tempo de sobra para um belo e diferente recreio. Fui logo encaminhada à cabine. Ao entrar, a visão do painel foi imediatamente obscurecida pela imagem sedutora daquele homem. Interesse redobrado, perguntei sobre todos os detalhes, que foram imediatamente descritos, com a mesma atenção das perguntas. O co-piloto, uma gracinha de rapaz, estagiário de voo internacional há seis meses, mexia nos equipamentos, atento aos comandos do instrutor-comandante. Eu não sabia o que era mais sedutor: a voz, os olhos, o sorriso, os movimentos ou o saber-se sedutor com a simplicidade de um gentleman. Aproveitei o que pude e me aprontei para sair e deixar que outro visitante tomasse o meu lugar. Ele insistiu para que eu ficasse. Sorri. Vontade não faltou, mas, discreta, aproveitei a deixa para escapulir.

Voltei sorrindo comigo mesma, pela pequena aventura. O “Nome da Rosa” me esperava, largado displicentemente na poltrona. Voo longo, leitura longa. Tinha tido um bom começo, o dia parecia promissor. Deitei-me ao longo de três poltronas vazias, como quem se deita no conforto de uma rede, livro em punho, e comecei a ler o primeiro parágrafo. Confesso que custei a engrenar na leitura, pois aquela voz maravilhosa ainda ressoava em meus ouvidos. Passei uns segundos para perceber, no entanto, que a voz não ressoava, soava:

- Eu já expliquei a você que um avião como esse praticamente voa sozinho, mas o resto dos passageiros não sabe disso. Quando eles virem o comandante em pé aqui no corredor, pensarão que deixei a aeronave à deriva e podem entrar em pânico. Você não acha mais conveniente evitar tudo isso e voltar comigo para a cabine?

Levantei os olhos, embaraçada. Ele, ali, de pé, um metro e oitenta de sorriso branco e puro. Claro, ninguém iria querer colocar os passageiros em pânico, nem a aeronave em risco e segui as ordens do comandante, acompanhando-o obediente e compenetrada ao que seria minha deliciosa prisão, nas próximas 10 horas.

Foi um vôo de sonhos. De quebra, o co-piloto ouvia o jogo por um comunicador sei lá de que e, delicadamente, não dava ouvidos a nosso papo. Falamos de tudo, como acontece com quem não quer deixar a peteca cair. Aliás, seria difícil deixar uma peteca cair diante daquele homem. Cheguei a me perguntar se aquela voz precisava ter conteúdo. Não precisava. Mas tinha, o que tornava tudo bem mais interessante. A cabine, convenhamos, é desconfortável, assento atrás do co-piloto. Mas quem liga, numa hora dessas? Ele também não estava lá muito bem, pois tinha de se sentar de lado para conversar com sua prisioneira, que, pelo que tudo indicava, também lhe parecia bem interessante. Lanchamos ali mesmo, almoçamos conversando, bandejas ao colo. A cabine é estreita, pois não foi feita para passageiros. Não havia privacidade, mas havia encanto. Por enquanto, era suficiente. Escala em Recife. Preparei-me para sair, quando vi a aeronave fazer os primeiros ensaios de descida. Imediatamente ele me perguntou se eu queria perder a parte mais interessante da viagem: aterrissar ali, em pé, entre os assentos do piloto e do co-piloto, vendo o bico do avião na pista. Perguntei se podia. Podia. O soberano da aeronave é seu comandante, por que não? Meu coração saltou. Senti-me a primeira dama. Levantei-me, vi a pista lá embaixo naquele final da tarde, sol começando a cair no horizonte. Muda, emocionada, hipnotizada, enquanto o co-piloto se preparava para realizar o pouso, como tarefa de seu estágio, sob o olhar agudo de seu instrutor.

Aeronave embicada, ouvi o comandante perguntar ao co-piloto:

- Como vai indo o jogo?

O rapaz respondeu:

- Não sei, retirei o fone.

E continuou compenetrado levando o avião rumo à pista. O comandante olhou para ele e sorriu. Dei-me conta da competência, do cuidado, da agudeza de professor, da segurança, do treino, do cuidado com a avaliação constante de seu discípulo. Engrandecido a meus olhos, mais uma vez.

Pouso sereno, parabéns dados ao discípulo.

Sentamos na primeira classe, completamente vazia. Apenas ali, volta e meia, nossos corpos se tocavam, com suavidade propositada. Ali mesmo me senti completamente pronta para uma noite amorosa, sem preliminares, ou melhor, com todas as preliminares já meticulosamente consumadas, em céus internacionais. A cabeça não pensava nada, mas a mulher desejava que o vôo terminasse no Rio de Janeiro, mais especificamente, em minha casa. E eu ainda não sabia das emoções que ainda me aguardavam...

Hora da partida e eu já me via ali, entre as duas poltronas para ver o avião alçar seu vôo sem limites. Desta feita, o próprio comandante levou o aeronave aos céus, explicando que levantar é muito mais difícil do que descer e que o co-piloto só faria sua primeira tentativa depois de mais não sei quantas horas de estágio, dos seis meses que já possuía. E eu que pensava que descer era mais difícil...

A noite se fazia plena e pura. À esquerda, a lua em quarto crescente, linda! Voo estabilizado, o grande presente:

- Agora você vai ver uma das coisas mais maravilhosas, que fazem a vida de um piloto valer a pena.


Dito isso, levantou-se e me convidou a sentar-me em sua poltrona. Nossos corpos se tocaram como nunca, nessa troca na cabine não tão apertada, mas cúmplice. Sentei-me, o comandante ordenou ao co-piloto que todas as luzes da cabine se apagassem e me disse para ficar ali, sem pressa.

De repente, me esqueci de tudo. Colei-me ao vidro, a lua parecia estar ao meu lado. O céu intenso em suas estrelas, a vida explodindo dentro do meu corpo, da minha alma, do meu espírito. Dentro da cabine, silencio total, respeitoso, cúmplice. A luz interior vívida, pura, completa. Deus e eu. E nada. E tudo. Naquele momento, ele não era o homem, era o anjo que me levara ao encontro com o divino. Fiquei ali, muito tempo, eu acho, perdida, achada, inteira, perplexa, maravilhada, surpresa, extasiada, feliz.

Foi a melhor e mais linda cantada que recebi em minha vida. Aquele homem queria o encanto. E o teria, se quisesse.

Custei a voltar a mim, a me levantar devagar, a trocar de lugar novamente. Corpos se tocando, desta vez, em êxtase. Ficamos em silêncio, os três, por mais algum tempo. Eu estava muito emocionada e eles sabiam. Toquei seu ombro por trás, em agradecimento. Lembro-me do toque de sua mão sobre a minha, seu rosto voltando-se para trás, sorrindo suavemente e percebendo a necessidade do silêncio contemplativo.

A conversa foi voltando aos poucos, suave a princípio, alegre, gentil, bem humorada depois. O tempo passou transformando horas em segundos e eu já estava em pé, vendo a ponte Rio-Niterói, os pontos magníficos de nossa cidade amada. Mas apenas eu desceria no Rio... ele seria transportado para um vôo doméstico, como passageiro, depois de tão árdua viagem, para pousar em São Paulo, destino traçado em sua escala. Que pena. Mas ali mesmo pediu o meu cartão, dizendo que me telefonaria tão logo chegasse ao Rio, na semana seguinte. Acompanhou-me até a saída da aeronave, eu, primeira passageira a sair, com minha mala de mão já cuidadosamente a minha espera, trazida por um dos comissários. Mínimos detalhes.

Nos despedimos ali, sem um beijo, sem um toque senão o do olhar.

Uma semana depois, ao chegar em casa, sua voz alegre me esperava na secretária eletrônica. Estava no Rio e esperava ansiosamente, frisou, pelo meu retorno à ligação, pois só poderia ficar durante um dia.
Único deslize, mas fundamental, em toda a história: esqueceu-se de deixar o número para que eu desse retorno...

E homem tem dessas coisas: acha que, se não retornamos, foi porque já esquecemos ou não demos tanta importância. Pode ter sido isso, pode ter sido a fluidez do momento, podem ter sido outras aventuras. Não ligou mais.

Ficou-me a sensação do sonho jamais esquecido, e, vez por outra, vivido e resgatado em momentos preciosos pelo meu coração. Um terno e gracioso brinde à vida, à delicadeza e ao prazer do corpo e do espírito.

domingo, 18 de abril de 2010

NO DAR PAPAYA


“No se puede dar papaya”. Foi com esta frase que o taxista colombiano me alertou, tão logo cheguei a Bogotá, referindo-se à necessidade de não andar pela cidade com jóias, máquina fotográfica à mostra, etc. Sorri: queria ensinar os cuidados de como andar por uma cidade grande. Logo a quem!... a uma carioca não da gema, mas de coração. Por extensão, a expressão significa ao que, por aqui, designamos “não dar mole”.

Pois bem, obedecendo aos costumes, não dei “papaya”, buscando estar atenta a possíveis perigos ou tipos estranhos que pudessem se aproximar. Mas nada vi em Bogotá, diga-se, durante o dia, que me pusesse em risco como turista. Muito pelo contrário!!! Me senti muito mais em risco pelos dezoito mil pesos que o motorista me cobrou para chegar ao centro cultural da cidade do que pelos nove mil pesos que outro taxista me cobrou para voltar. Eu é que dei “mole”... ops... “papaya” pagando, sem o saber, pelo requintado “cuidado” daquele senhor. Acho que acrescentou os nove mil para ensinar-me a tal expressão popular. Muito caro. Mesmo para uma lingüista.

Tão logo cheguei ao hotel, no entanto, mesmo antes dessa pequena aventura, já havia passado por outra, tomando a minha primeira providência na cidade, obedecendo confiantemente a uma recomendação de um grande amigo que já tinha estado na cidade:

- Tão logo chegue, informe-se sobre o chá de coca, pois a cidade fica a mais de dois mil e quinhentos metros de altitude e você corre o risco de sentir muita diferença atmosférica. Tonturas, dor de cabeça, falta de ar poderão atrapalhar você nos primeiros dias. Tome um logo que chegar e poderá se sentir a postos para estar bem desde o início.

Claro, obediente como sou a estas recomendações, fui direto ao assunto. Mas, não, não havia chá de coca no hotel. Tampouco por ali. Um supermercado não soube me informar nada a respeito, nem outras “tiendas” (lojas) , pelas cercanias. Eu sentia um leve torpor e, cuidadosa, andei devagar sempre, principalmente no primeiro dia. Mas, na verdade, felizmente, não passou disso. Como tinha chegado na sexta à tarde, queria logo me desvencilhar dos cuidados com a saúde. Começaria um curso no domingo e queria estar bem para andar à solta, no dia seguinte, aproveitando a oportunidade para conhecer um pouco a cidade. Mas nada achei. Ao invés disso, as pessoas me olhavam com uma cara meio prá lá de esquisita. Lembrei-me de meu amigo e de sua maneira brincalhona de ser. Acho que me pregou uma peça, pensei, me fazendo andar por ali, pagando o mico de pedir um chá de coca!!! E eu caí!!! Voltei para casa, digo, hotel, com a piada na cabeça. “Dei papaia” logo para quem! Para um brasileiro!

Esqueci o chá de coca e tratei de comprar umas frutas e outros pequenos alimentos para ter no quarto. Com minha sensibilidade alimentar, sempre faço isso em minhas viagens e queria preparar-me para uma excelente estadia durante a semana que se seguiria. Foi só o que fiz. Não iria me aventurar a passeios mais longos, naquele dia. Tinha chegado às 16 horas e não estava em Bogotá a passeio. Conhecer alguma coisa da cidade seria um brinde. Deixaria para o dia seguinte. Minha meta era participar de um grande seminário de Reiki com Tadao Sensei e Arjava Sensei, na minha concepção, os melhores mestres de Reiki do mundo. Frank Arjava Petter é meu mestre desde 2004 e Tadao Sensei o mestre de meu mestre. Você pode imaginar, portanto, o que estava a minha espera: um curso dado pelos dois, sendo que Tadao vinha pela primeira vez à América Latina. Imperdível. E foi mesmo imperdível: a vida me “regalou” com o melhor curso de Reiki que já fiz em minha vida!

Assim, cuidadosa para estar bem desde o início, cheguei com uma de minhas melhores amigas brasileiras, Carmen, uma irmã de alma, que mora em Porto Alegre e que se dispôs, como eu, a esta grande empreitada de vida. Minha querida irmã se fechou em seu quarto e de lá não saiu na sexta. A altitude a pegou muito mais que a mim e seria bom que repousasse. Aliás, ela também tinha recebido a tal recomendação sobre o chá de coca... Pelo resto do dia, fiz o mesmo, depois de minha tímida saída pelos arredores, em busca de suprimentos. Me sentia um pouco mareada, mas era só. Por via das dúvidas, melhor desarrumar a mala, organizar as coisas no quarto, sentir-me em casa e sonhar com o curso. Veria o que fazer no dia seguinte. Quem sabe, cautelosa, dependendo de como me sentisse, conseguiria ver, em alguma loja mais alternativa no centro da cidade, se o tal chá de coca era ou não uma “broma” (piada) desse meu querido, mas travesso amigo brasileiro. Se bem o conheço...

No sábado, me sentia bem e me arrisquei para o que diziam ser o melhor de Bogotá: o tour a pé tinha de começar pela parte velha da cidade. Era a indicação de meu amigo brasileiro (o tal do chá de coca), confirmada pelo centro de informações do hotel e também pelos folhetos turísticos. Ótimo! Não sou de fazer compras, não me interessavam os shoppings. Eu queria ver a cidade, levar suas impressões em minhas retinas, sentir os seus sons, sorver o ar em meus pulmões – rarefeito pela altitude, mas cheio de novas impressões para esta alma brasileira. Me soltei, assim, desde cedo, em busca de aventura. Bairro da Candelaria, centro histórico da cidade, local onde teria sido fundada. Impossível não começar pela praça de Simon Bolivar, este homem que tomou como missão de vida fazer a independência das colônias espanholas, por onde quer que passasse por esse mundo dos meus deuses. Há de se encher a boca para falar desse herói, quer você esteja na Venezuela, Colômbia, Peru, Equador e sei lá mais em que países da América do Sul. Minha amiga Patrícia, que mora em Caracas e conhece toda sua extensa biografia, teria muito a nos contar sobre ele... mas do que eu já sabia das lições que ela já havia me dado foi o suficiente para começar meu tour fazendo as honras a este desbravador das terras antes espanholas.

Chegada ao centro, uma visão surpreendente: uma praça enorme, bem ao estilo espanhol, como não poderia deixar de ser. De um lado, a velha catedral, de outro, o atual prédio do Congresso da República. Mas... o que estaria incrustado nas paredes desse prédio? Seriam formigas? Sim, um monte de formigas gigantescas, grudadas em suas paredes. O que significariam? Por ali, não tive como tomar informações. À noite, corri à internet, esta maravilhosa varinha mágica para respostas desse tipo e descobri ter sido obra do artista Rafael Gomezbarros. O nome da obra é “Casa Tomada”. Então, lendo a descrição e críticas sobre a obra, descobri que são mil e trezentas formigas em fibra de vidro, cada uma de 95 cm de comprimento. Suas cabeças e corpo tiveram como molde um crânio humano e tem essa cor de terra escura, pois o artista as cobriu com a terra de Chocó, de El Cerrejón, que foi uma conhecida mina de carvão da região de La Guajira. Assim, a idéia é remeter à representação especial que, segundo o artista, seria uma metáfora ao “desplazamiento forzado” (são chamados “desplazadas”, as pessoas que, sob violência, foram expulsas de suas terras nos campos, por grupos não controlados). Representava, também, tudo de bom que são os colombianos, como trabalhadores que buscam uma forma de viver melhor. As formigas se espalham pelas paredes do Congresso como se o estivessem invadindo e dão um impressionante impacto a quem chega à praça. Assim, pelo que pude ler, a obra pretende levar a uma consciência social, a uma reflexão sobre o cotidiano do povo, chamando nossa atenção para os fenômenos sociais ante os quais não devemos ficar impassíveis. O projeto, reconhecido como um “liberador de consciências” viajará para a Argentina, México, Chile, Estados Unidos, Canadá, Alemanha e Espanha. Segundo as críticas, um espetáculo “provocador, embora inofensivo”.

Esta foi, portanto, minha primeira impressão sobre a cidade. Antevi uma forma especial de ser apresentada a ela, uma forma impressionante, que, no entanto, longe de tirar o encantamento pelo resto da manhã, me fez pensar, naquele momento, em muitos de nossos também iguais problemas sociais. Países irmãos.

Mas voltemos ao passeio, que se tornou suave e pleno a partir de então. Seguiu-se uma maravilhosa visita ao Museu Del Oro, onde se concentram obras interessantes de xamãs colombianos de outras épocas, povos originários de regiões antes desconhecidas, enfim, das origens do país. O museu, muito bem montado, exibe obras de artesanato em ouro realmente magníficas.

Não pude deixar de visitar, também, o Museu de Fernando Botero, logo adiante, embora não esteja entre meus pintores prediletos. Mas como ir a Bogotá e não prestar honras a seu mais renomado pintor? A visita, embora rápida, me brindou com um ambiente magnífico de seus jardins internos, acolhedores e aprazíveis.

Passeei, enfim, pelas ruas em torno que apresentaram uma Bogotá primitiva, com suas casas coloniais. Buscava, sem o saber, alguma aventura. Deparei-me, então, com uma farmácia homeopática. Sorri. Pensei comigo que, se existisse o tal chá de coca, seria uma chance de meu amigo brasileiro não receber uma boa bronca em minha volta, pelo vexame que passara até então. Entrei e pedi o tal chá. A farmacêutica também sorriu. Pela primeira vez, me senti em casa. Foi quando me explicou que o governo atual havia proibido a distribuição desse chá, antes liberado para que uma colônia de indígenas o fornecessem à cidade, visando aos turistas. Perguntei por que e ela me disse que teria sido apenas por uma questão de falta de licença de fabricação. Dificilmente eu o encontraria agora, em alguma “tienda” da cidade. Ofereceu-me, então, uma medicação homeopática que comprei imediatamente, pensando em minha amiga brasileira que não conseguia afastar-se do hotel por conta de seu mal-estar com a altitude. E voltei, toda feliz, com um vidrinho de “Soroche”, uma planta da região, manipulada homeopaticamente. Mais do que isso, reconheci a boa vontade de meu querido amigo brasileiro, desculpado desde então. Felizmente, Carmen já estava melhor e preferiu não se arriscar com o medicamento. Fiquei mais tranquila e guardei o medicamento para uma possível emergência.

Falar sobre os dias seguintes, seria descrever o melhor curso de Reiki que já fiz em minha vida. O curso me trouxe um conhecimento mais profundo das raízes do Reiki, arte terapêutica a que venho me dedicando desde 1997 e que chegou ao clímax agora, depois de ter-me aposentado desde 2003, para dedicar-me inteiramente a ela. No final do curso, recebi um certificado especial, sob a forma de pergaminho (em seda e papel de arroz, com quase dois metros de comprimento) que deverá fazer parte de meu consultório de hoje em diante. Foi uma opção minha encomendá-lo desde agora, já que apenas no próximo nível de curso ele se tornará obrigatório aos alunos. Ansiosa por ter esta jóia, no entanto, eu o encomendara desde já e o receberia no último dia.
Você pode imaginar, portanto, a emoção desta viagem e dos dias que se sucederam. Mas trazer este documento para o Brasil, foi um espetáculo à parte, com um sério problema alfandegário, que me custou momentos dramáticos, que contarei mais adiante.

Por ora, quero dizer o quanto Bogotá representou como cidade, com seus cidadãos tão gentis que me lembravam a todo instante o jeito e o sorriso cariocas nesse povo irmão. Onde quer que fosse, a gentileza e a delicadeza brindaram este coração em festa, nessa semana maravilhosa. Saí de lá, levando a amizade do vendedor de frutas, do padeiro, dos funcionários do hotel, de meus colegas de curso, enfim, da alma colombiana tão parecida com a nossa!

Destaco, no entanto, que receber, no último dia, o tal pergaminho, me deixou totalmente emocionada, já que estou estudando por estes caminhos há tantos anos. E logo no dia seguinte à noite, começamos nosso árduo caminho de volta, minha amiga brasileira e eu. Por esta vez, apenas eu trazia o pergaminho, esperando que ela o queira receber da próxima vez, quer por opção, quer por trilhar os caminhos do grau superior.

Após tantas aventuras, com tantas novidades, passei a pensar na publicação desse conto, incentivada mais ainda pelas passagens que marcaram nosso retorno, a partir mesmo do aeroporto. Aí, então, começa o capítulo dos sustos. Como já lhe disse em contos anteriores, tenho um anjo que me oferece certos tipos de aventuras, cheias de sensações fortes e experiências especiais. Você que leu meu “Golpe de Mestre” já se familiarizou com isso. E, certamente, ele se fez presente, mais uma vez.

Chegamos ao aeroporto em cima da hora, graças a uma colombiana que, embora muito gentil e nos tenha levado para almoçar neste último dia, parecia nunca ter viajado. Perto das 17 horas, só conseguíamos pensar em nos dirigirmos ao aeroporto. Estávamos bem longe, era sexta-feira e queríamos evitar “el trancon” (o engarrafamento) próprio do final do dia, principalmente, numa sexta-feira. Mas prefiro pular o desespero que se seguiu para conseguirmos chegar ao aeroporto às dezenove e quinze.

Feitos os procedimentos necessários, nos dirigimos à sala de embarque. Eu estava cansadíssima e não queria outra coisa senão sentar-me para a pequena espera do vôo iminente. Eu e o pergaminho que trazia agarrado ao meu colo. Claro que estava fora de questão despachá-lo. Ele viria comigo, após tantos anos de espera por recebê-lo. Para o tipo de curso que fiz e repeti tantas vezes, recebê-lo, finalmente, neste ano, foi uma honra e o trazia ao colo como a um bebê.

Ao ouvir meu nome, meu coração pulsou. O que seria? Algum problema com a documentação? Minha amiga brasileira também assustou-se um pouco. Tentei tranqüilizá-la (e a mim mesma) com meu sorriso e me apresentei no balcão da sala de embarque. A comissária, com semblante sério me informou:

- A polícia federal quer revistar sua bagagem.

- Qual delas, perguntei, já que tinha despachado a mala e tinha, além da mala de mão, apenas o tal pergaminho, super cuidadosamente embalado.

- Sua mala despachada.

Pensei rápido e concluí aliviada:

- Ah, tudo bem, já sei do que se trata.

O que se tratava era, com certeza, de uma panela de metal, elétrica, com que sempre viajo para emergências nos hotéis. Com ela faço meus chás noturnos ou alguma sopinha extra para meu delicado aparelho digestivo. Estava resolvido o problema e, pela minha expressão de segurança e tranqüilidade, vi que a comissária não conseguiu manter sua rudeza inicial. Voltei à cadeira, expliquei o problema a minha companheira de viagem. Ofereceu-se para ficar com minha bagagem de mão e meu pergaminho, enquanto eu me dirigia à vistoria. Tentei brincar com ela e apenas disse:

- Fique despreocupada. Se eu for presa, levarei o pergaminho comigo. Não sei se foi impressão, mas ela me pareceu um pouco preocupada, mas acho que meu sorriso de confiança, já que estava certa do que se tratava, acabou por tranqüilizá-la. E, ali, tramado, talvez, pelo meu anjo aventureiro, estava delineado o início de minha aventura da volta.

Fui levada, corredor afora, sob os olhares curiosos dos demais passageiros, que não sabiam o que estava acontecendo com aquela passageira acompanhada pela representante portuária. Seria eu uma terrorista? Com essa cara inofensiva? Nunca se sabe. Fantasiei assim minha mente com essa conjectura. Sei que aventuras percorrem os dias de minha vida e lá estava eu, mais uma vez.

A polícia colombiana é extremamente formal, mas respeitosa. Ou terão sido meus cabelos grisalhos, meu semblante calmo e risonho de quem não deveria matar uma formiga? Nunca saberei.

O oficial me esperava numa espécie de corredor, que fica entre a sala de espera ao avião e o setor de embarque das bagagens. Me deparei com ele apenas acompanhada pela tal representante portuária. Estávamos, então, os quatro: ele, eu, a representante feminina e a mala suspeita. Não pude conter o sorriso diante do cerimonial. Eu poderia ser liberada ou presa e parece que apenas eu sabia que seria, incontestavelmente, liberada, pois nada havia ali de suspeito, com certeza. O problema seria me sair da situação da melhor forma possível, sem muito constrangimento. E a melhor forma que encontrei foi estar solícita, destrancar o cadeado e eu mesma colocar tudo que fora cuidadosamente arrumado de manhã, mala afora, pelo chão do recinto, já que não havia mesa ali. Foi o que fiz, dizendo a ele, antes, que eu suspeitava do que se tratava. Tão logo abri a mala, mostrei-lhe a tal panela. Sim, não era outra coisa. Mas ele continuava sério demais para o meu gosto e eu queria me livrar da situação de tensão. Continuei tirando as coisas da mala e as espalhando, convidando-o a perceber que eu estava completamente aberta à vistoria que, realmente, foi totalmente minuciosa. Vi cada ponto da mala ser revistado, inclusive remédios pessoais que estavam cuidadosamente embalados. Não sabia o que dizer, nesse ambiente de formalidade e semi-cordialidade, até que tive a idéia de agradecer-lhe pelo cuidado da vistoria. Foi então que ele parou e me perguntou por quê. Felizmente, tenho espanhol suficiente para ser entendida nestes momentos e respondi-lhe:

- Ora, se o senhor está tão cuidadoso com uma mala como a minha, posso viajar muito tranqüila, pois vejo que a segurança colombiana mostra-se muito atenta a qualquer possibilidade de colocar-nos em risco. Longe de estar aborrecida, só poderia agradecer-lhe.


Senti que o desarmara. Pela primeira vez, ele sorriu e retrucou:

- É a primeira vez que vejo um passageiro agradecer-nos por ser importunado.

Senti que o conquistara. Estava ganha a situação:

- Pois todos deveriam se mostrar agradecidos por esse tipo de iniciativa.

Dali por diante, mudou-se o rumo da prosa e, embora a vistoria continuasse, ele começou a perguntar sobre o material que estava encontrando em minha bagagem, ou seja, CDs e livros sobre Reiki e outros materiais sobre o curso. Acabamos nosso papo com informações sobre esta técnica maravilhosa de cura e ele acabou por mostrar-se interessado por conhecê-la melhor, já que estava se sentindo muito estressado. No final, estávamos íntimos e ainda brinquei com ele:

- Você pode me fazer um favor?

- Sim, claro!

- Tome conta para que esta mala não se extravie e chegue ao meu país em paz.

- Pode ficar tranqüila,
me respondeu ele, eu cuidarei disso pessoalmente.

Sorrimos e nos despedimos. E mais: com este final feliz, acabei por ter o privilégio de vê-lo me ajudando a refazer a minha mala e, o melhor, a me conduzir diretamente para o avião. Assim, quando minha amiga entrou no avião, eu já estava confortavelmente alocada, como primeira passageira a ter tomado meu lugar, antes de o vôo ser liberado para os demais.

A primeira fase do susto, tinha sido, então, ultrapassada. Mal sabia eu que o pior ainda estava por acontecer!

A viagem de volta foi cansativa, num vôo noturno de cinco horas e meia, com duas interrupções para o lanche noturno e o café da manhã. Quem conseguiria dormir com um barulho desses? A chegada a São Paulo ainda me aguardava com uma conexão para o Rio. E, ufa, uma conexão rápida que não me deixava intervalo sequer para muito espaço de tempo. Seria pegar a bagagem, correr para o novo check in e me dirigir, às pressas, ao salão do novo embarque. Para mim, no entanto, seria apenas a última etapa e nada mais poderia ocorrer.

Me despedi satisfeita, mas já um pouco saudosa de minha querida amiga, que mora em Porto Alegre. Mal consegui despachar a mala, fui correndo para a sala de embarque. Foi aí que vivi o verdadeiro susto da viagem. Ao passar minha bagagem de mão pela esteira de inspeção, eles cismaram com o meu Gokai (o tal embrulho do pergaminho), porque ele vem embalado numa caixa de madeira e, segundo eles, madeira não pode acompanhar o passageiro. Não poderia passar de jeito nenhum. Que eu voltasse ao salão de embarque e o despachasse como bagagem. Para evitar maiores confusões, apenas comecei explicando que se tratava de uma espécie de certificado, que era japonês, feito em seda e papel de arroz, muito delicado e que teria de levá-lo comigo. A madeira era balsa e quebraria ao mínimo choque. Tinha vindo com ele em meu colo desde Bogotá e não tinha havido problema algum de embarque naquele país. De nada adiantou. Dali não passaria, teria de ir no bagageiro. Comecei a ter um treco por dentro. O que faria? O documento é super frágil e delicado, não poderia ser despachado e ademais de ter-me custado caríssimo, como ocorre com qualquer arte japonesa feita totalmente à mão, qualquer pequeno tranco colocaria em perigo sua integridade. Teria de defendê-lo a ferro e fogo. Aquilo não iria para o bagageiro nem que tivesse de dar uma de doida naquele momento. Mas parecia não ter jeito. Chamaram outro fiscal que me exigiu o mesmo. Então, tive mesmo de apelar. Meu coração estava em estado de alerta. Parecia que eu tinha mesmo de ter um treco explícito ali e respondi:

- Despachar isso? Nem pensar, isso vai comigo ou eu não vou. Estou disposta a ser revistada ou seja o que for, mas isso não vai no bagageiro de jeito nenhum!

- Mas madeira não passa minha senhora.

- Esta madeira é balsa e quebra ao mínimo toque. Ela apenas está protegendo um certificado dado pelo meu mestre japonês Tadao Sensei, após quatro anos de espera por sua primeira vinda à América Latina. Eu sinto muito, mas não posso me separar dele. Isto vai no meu colo ou teremos de arranjar uma alternativa parecida. Não vou me separar dele. No bagageiro ele não vai.


Na minha cabeça, não haveria mesmo outra alternativa. Eu estava disposta a desistir do vôo para vir de ônibus, pois colocá-lo no bagageiro significaria correr o risco quase certo de vê-lo danificado. Imagine você! Uma espécie de “pergaminho” escrito em papel de arroz, protegido por uma tela de seda, escrito em kanji japonês, guardado em uma caixa delicadíssima de madeira tipo balsa, por sua vez guardada em uma outra caixa de presente, em material delicadíssimo e de finíssima estrutura, bem ao estilo japonês. E eles queriam que eu colocasse essa jóia no bagageiro! Nem pensar! Voltaria de ônibus, se não tivesse outra alternativa. Mas, antes, iria criar uma confusão ali mesmo, é claro, tentando defender meus direitos.

Quiseram abrir a caixa. Estava disposta a fazê-lo, mas exigi uma sala especial, explicando que o documento media quase dois metros de comprimento por sessenta de largura e, efetivamente, não iria espalhá-lo pelo chão nem por um decreto. Além de perigoso, seria um desrespeito ao que significava para mim. Eu acho que parecia bem disposta a enfrentar qualquer autoridade. E parecia, pelo menos por fora, demonstrar uma confiança que, por dentro, estava longe de sentir. A única coisa que pensei no momento foi que, por uma coisa dessas, não poderiam me prender, mas que eu estava bem enrascada, isso eu senti que estava sim!

O impasse estava criado. Por via das dúvidas, eu segurava meu Gokai como quem segura um tesouro, enquanto lhes dirigia a palavra, mostrando a intenção de que não me arrancariam a prenda das mãos, digo, braços. Todos se entreolhavam, impondo autoridade. Eu tentava ignorar a importância que queriam dar a essa autoridade, exigindo um oficial superior. Dali não arredaria pé. Mas por dentro já estava disposta a desistir do vôo que, por sinal, piscava o embarque imediato no telão em frente, incluindo minha mala já no bagageiro. Que boa enrascada!

Não teve jeito. Chamaram o oficial superior. Pedi proteção a todos os deuses olímpicos. Não me esqueci, é claro, do meu anjo aventureiro. Seria minha última chance. Surgiu uma mulher. Uma oficial superior e, embora séria e compenetrada, segura de seu posto, estava mais accessível e aberta a diálogo. Expliquei novamente que viera de Bogotá com o certificado no colo e desfiei a ladainha do que significava.

- É... mas madeira não pode passar. Posso ver o material?

- Não deve, mas pode,
expliquei novamente, semi tendo o tal treco explícito.

Ela insistiu que deveria ser levado no bagageiro.

- Nem pensar,
insisti. Levei quatro anos para consegui-lo. Se ele não vai passar, vou ter de desistir da viagem e ir de ônibus para o Rio, pois ele tem de ir comigo. No bagageiro ele não vai.

Ela notou que eu falava mesmo para valer e parece que percebeu a seriedade da coisa. De repente, por dentro, fiquei tranqüila. Já tinha feito o pior trecho da viagem e depois de tudo que já tinha passado, não iria deixar barato, não podia “dar mole”. Eles que decidissem. Eu não me separaria do meu Gokai. Danem-se, viajo de ônibus. Por dentro, com a decisão tomada, consegui mostrar-me mais calma e decidida. E pode ser que isso tenha sido definitivo para a decisão final.

- Pesa? perguntou-me a fiscal. Não sei exatamente o que significava a pergunta... talvez uma madeira que pudesse ser um arma, durante o vôo.

- Não, pode pegar. Não deveria abrir, mas o farei, se for necessário. Mas pegar o pacote, você pode.

- Foi dado por quem mesmo?


- Por meu mestre japonês Tadao Sensei. Esperei por recebê-lo por quatro longos anos. Falei tentando emitir o tom solene que a situação exigia. Não sei se consegui. Também tentei sorrir. Acho que não consegui. De qualquer forma, foi uma frase de impacto. Até porque eles viram que eu não iria mesmo arredar pé da decisão. E o vôo estava de saída, pelo menos na tela que mostra os embarques.

Ela pegou o embrulho e avaliou o peso. Olhou para seus companheiros e finalmente decidiu:

- Pode embarcar.

Toda a cerimônia não deve ter levado mais de dez minutos, mas para mim, dez longuíssimos e intermináveis minutos...

Não me lembro se agradeci. Acho que sim. Saí correndo pelos corredores de Guarulhos, rumo ao portão 26 que, como alguns sabem, é o último, no final daquele infindável corredor. Depois de uma viagem de noite inteira e depois de duas inspeções federais, tinha passado por uma overdose de emoções. Meu coração deve estar muito bom mesmo. Em excelente forma!

Cheguei ao portão 26 com a língua de fora. Olhei em volta. O avião já estava estacionando para o vôo de conexão. Tanta correria, mas, felizmente, o embarque não tinha começado. Mas para quem estava viajando desde a véspera, esta última espera, depois de tantas intempéries, virou um recreio.

Depois de tanta correria, esperei por quarenta minutos pela hora de embarque, tempo suficiente para eu me sentar e fazer uma rápida retrospectiva de tudo que tinha passado, desde minha chegada a Bogotá até a volta ao Brasil.

Sorri. Numa conclusão simples pensei no que diria a um amigo ou a amiga que tivesse de passar pelas mesmas situações:

- Para a altitude, tome vinte gotas de Soroche, três vezes ao dia, nos primeiros dois dias; para as intempéries que possam acontecer durante a viagem, seja forte, “no puedes dar papaya!”

sábado, 10 de abril de 2010

MORAIS


Não fui aluna de latim do Morais. Infelizmente. Mas isso não quer dizer que não o considere um de meus maiores mestres. Fui sua aluna, de uma única aula, como você verá, a seguir.

Quando me formei e tive o privilégio de ser contratada pela própria universidade, ganhei de brinde o inestimável prazer de conviver com vários de meus mestres, na sala do cafezinho dos professores. Naquela época, existia.

No começo, sentia-me muito constrangida e pouco ia lá. Afinal, estaria tomando café com a maioria dos meus professores do ano anterior. Mas, aos poucos, fui me acostumando e lá aprendi muitas coisas do convívio acadêmico, chamado “informal”. Piadas como trocadilhos da língua portuguesa, entre conceituados gramáticos, alguns deles com renomadas gramáticas publicadas. Lembro-me do Morais conversando com um desses ilustres colegas que acabara de se mudar para a Barra da Tijuca. Na década de oitenta, isso significava muito luxo. E para um professor, então, só tendo mulher rica, no mínimo... mas isso não vem ao caso. O tal ilustre colega acabara de lhe dizer:

- Quando eu chegar à casa, avisarei.

Morais nunca perdia a oportunidade de um gracejo:

- Ah, claro, depois que você se mudou para a Barra só chega à casa. Eu, que moro em Botafogo, chego em casa mesmo.

É preciso dizer que Morais era queridíssimo dos alunos. Muitos madrugavam para se matricularem em seus cursos, quer por ser um mestre atencioso e sério em seus afazeres, quer por sua competência. A seriedade profissional, no entanto, não lhe tirava a graça, nem as piadas, sempre oportunas. Era competente e popular. Não fui sua aluna e lamento por isso, pois quando ele entrou para dar aula lá, eu já havia passado pelas disciplinas que ele ministrava.

Lembro-me de os alunos comentarem sobre suas aulas. Quando ele estava concentrado, com freqüência confundia o cigarro com o giz, tentando escrever com um e fumando o outro, pois sempre tinha os dois em suas mãos. Seria proposital, para manter a atenção? Como saber? E fazia da aula uma piada, o que ajudava a guardar o conteúdo. O que posso dizer é que não tinha nenhuma intimidade com ele e apenas o admirava à distância, restringindo-me a cumprimentá-lo gentilmente.

Não é apenas esse, no entanto, o Morais que trago no coração. Outro, muito mais grandioso se apresentou a mim, no momento mais adequado. O flash que tanto me marcou aconteceu numa manhã, depois de uma reunião do departamento.

Ocorre que a Chefe de Departamento tinha uma especial aversão por mim. E desde que subira ao posto, isso se tornava cada vez mais claro, não só a mim, mas a todos que me cercavam. Passou a ser uma coisa tão pública que não tinha como esconder. Aliás, ela não fazia nenhuma questão de esconder, verdade seja dita. Minha promoção que seria certa naquele ano deu adeus a meus sonhos. Meus artigos eram vetados, a revista que eu organizava com os trabalhos dos colegas simplesmente parou em sua mesa. Nada que eu fizesse ia para frente. Parecia que ela buscava pinçar ou adivinhar os meus passos para cortá-los antes que eu pudesse chegar lá. Só não conseguiu tirar minhas aulas de grego, mas até minha carga horária foi substancialmente diminuída.

Tudo corria às péssimas maravilhas e chegou ao ápice na tal reunião. A tal professora parecia meio neurótica. Marcava as reuniões sempre em uma sexta, às 7h30min da manhã e nunca terminava antes das 12horas. Quatro horas e meia de falação geral. Não havia tanto assunto assim, mas, uma vez por mês, ela nos reunia para seus infindáveis discursos sem muito objetivo e com implicâncias de todos os tipos. Uma chatice. Na verdade, era um suplício não só para mim, mas para todos os colegas. Naquela reunião, em especial, ela vetou três de meus projetos: o da revista, o de um congresso, o de uma pesquisa. Havia votação a favor, mas o argumento que ela apresentou, embora sabidamente não verdadeiro, era irrefutável: não havia verba para isso.

Então, eu estava lá, sentada, vencida, mas bem quieta, para não me arriscar a mais uma de suas pauladas. Num determinado momento, no entanto, senti necessidade de ir ao banheiro. Levantei-me, o mais discretamente que pude, e me dirigi para a porta. Como estava no fundo da sala, ir e voltar seria uma questão de momentos. Ademais, outros colegas já estavam fazendo isso, quer com o mesmo objetivo, quer para descansarem um pouco daquela lenga-lenga. Mas bastou que eu ameaçasse sair que fui logo abordada por ela:

- Eulalia, posso saber quem lhe deu licença para sair?

Pronto, ela achou, provavelmente, que era uma das freiras do meu antigo internato a quem uma aluna teria de pedir licença para fazer xixi. Meu sangue jovem subiu, mas cautelosa, desceu rápido também. Não iria entregar os pontos, depois de ter resistido quieta, até ali. Fosse outra pessoa, talvez eu brincasse, mas apenas respondi seriamente:

- Desculpe, mas, infelizmente, a sala não nos oferece toalete. Eu preciso me retirar para cumprir uma necessidade física.

Não soou como piada, pois não era essa intenção. O enfoque era mesmo de indignação. Virei as costas e saí, não antes de notar que muitos de meus colegas olharam diretamente para ela, igualmente indignados. A essa altura, a perseguição era tão aberta, que eu tinha conquistado, mesmo sem querer, a simpatia de todos, mesmo de meus antigos professores, que eram antigos colegas de trabalho dela. Alguns já até tinham falado comigo, pedindo paciência. E paciência era mesmo o que eu tinha, a duras penas, mas tinha. E a exercitava calando-me. Há tempo para tudo e eu estava consciente de que aquele... era tempo de silêncio. Dadas as circunstâncias, eu sabia que o contrário seria o mesmo que dar murro em ponta de faca.

Este dia, no entanto, foi a gota d’água. Decidi pedir demissão. Eu era jovem e não precisava me subjugar a tanta perseguição. Haveria outros empregos. Eu estava terminando o doutorado, não havia razões a temer. Aos meus trinta e poucos anos, o mundo se abria em oportunidades para mim. Deixaria para trás grandes amigos e uma universidade de que gostava muito. Tinha me formado ali, me sentia muito querida por alunos e colegas. Mas resolvi me demitir e deixar que a rainha seguisse com seus súditos em paz.

A universidade em que eu lecionava naquela época tinha uns janelões lindos que davam para um lugar privilegiado do Rio de Janeiro. Como aluna ou professora, quantas vezes eu me debrucei ali para olhar a paisagem, conversar com colegas ou simplesmente descansar meus olhos. Nessa ocasião, no entanto, o olhar era de despedida. Queria decorar a paisagem que jamais veria de novo. Sairia dali para escrever minha carta, entregá-la no mesmo dia e nunca mais voltar. Estava acabado, eu me rendia.

Absorta, assim, em meus pensamentos, não percebi a aproximação de ninguém até que uma mão suave pousou em meu ombro. Virei-me. Era o Morais. Havia estado na reunião, que assistira calado, sem intervenções. Sequer tinha dado por sua presença, já que éramos 40 professores. Mas ele estivera lá, agora eu percebia. O mestre me sorriu, como se fôssemos aluno e professor. Devolvi-lhe um sorriso triste, sem palavras. Nada diria a ele. De que adiantaria? Não tínhamos qualquer intimidade. Ademais, isto era um segredo interior, algo que só cabia a mim arquitetar, colocar em prática e me retirar. Sem mais conflitos. Mas ele estava ali e, na verdade, eu não sabia o que ele pretendia. Nunca viera falar diretamente comigo. Nossos encontros se davam, apenas, na sala dos professores. Mas ele estava ali, sorrindo docemente até que me perguntou:

- Você me permite que lhe diga uma coisa?

- Claro, respondi.

Olhou-me profundamente, seu sorriso era brando e doce:

- A inimigo, querida, não se pede nada. Nem demissão.

Alisou meu cabelo, virou-se e afastou-se devagar, sem olhar para trás. Ele percebera. De todos, ele percebera. E buscara a palavra certa para o meu coração.

Não pedi demissão. E tive, desse grande e silencioso amigo, uma das aulas mais importantes de minha vida. Uma única aula. Inesquecível.

Dois anos depois, mudamos de chefe de departamento e eu fiquei ali, ainda, por uns três ou quatro felizes e maravilhosos anos.

Doce amigo, obrigada. Sua frase foi repetida por mim, várias vezes, no decorrer de minha vida. Esteja certo de que você salvou não apenas a mim, mas a muitas outras pessoas, através de mim, boa aluna que fui, naquela manhã de sexta.

sábado, 3 de abril de 2010

GOLPE DE MESTRE


Tudo começou quando vi o filme “Golpe de mestre”. Era bem moça e saí com aquele espírito aventureiro. Naquele momento, desejei ardentemente viver uma aventura assim, desde que me saísse como heroína da história, evidentemente. Eu não tinha os personagens, nem os fatos... mas tinha a essência: o suspense, o drama!

Levou anos para acontecer, como se um anjo estivesse bordando o roteiro, juntando os atores, enfeitando os detalhes.

Fins de janeiro de 1985: recebi um telefonema de uma vizinha de meu pai, de Braga, Portugal:

- Acho melhor você estar aqui, pois seu primo Manuel fugiu com todos os pertences de valor de seu pai, inclusive as carteiras de contas bancárias. Seu pai está mal, sem sair da cama, não entende bem as coisas e quem está cuidando de tudo, inclusive da prisão do Manuel, são uns os primos de Braga, que a menina não conhece.

Primo Manuel fugiu com tudo de valor de meu pai? O primo, em quem ponho toda a minha complacência, que me carregou no colo quando eu era pequenina, que não podia me ver sem que as lágrimas do carinho e da gratidão aos anjos do céu por ter me conhecido deixassem de escorrer pelas faces rudes de sua alma campesina? Não, não o primo Manuel, procurado pela polícia, foragido, enquanto meu pai estava entregue a uns primos dos quais nunca tinha ouvido falar. Muito, muito estranho.

Quando estive pela última vez em Portugal, em 1983, meu pai tinha me convidado para ficar definitivamente morando lá, cuidando da Quinta. Ah... a Quinta de San Martinho de Dume, o melhor vinho-verde que já provei na vida... mas isso é outra história, que talvez eu conte depois. O que vem ao fato é que, se lá ficasse, teria de abandonar uma carreira em ascensão, a um ano da defesa de tese do doutoramento, professora universitária no Brasil e um mundo de livros pela frente. Não aceitei. Ele, previdente, vendeu a Quinta, os pertences imóveis, cuidou para que tudo estivesse pronto para sua velhice e abençoou meu futuro - muito a contragosto, diga-se de passagem, mas abençoou.

Naquela altura (como dizem os portugueses), pedi a Manuel, afilhado de meu pai e meu primo querido, que cuidasse dele para mim. Pelo que eu sabia, quando meu pai adoecia, o fiel escudeiro deixava sua casa em Vila Verde (mulher, filhos, cabritos, parreiras, oliveiras e o escambau...) para dormir no chão, ao lado da cama de meu pai, fiel ao compromisso firmado comigo. Ué... o que aconteceu? Só indo lá para ver.

Estava pronto o roteiro, o script, o presente pedido ao mundo da aventura e eu nem tinha me dado conta ainda... santo anjo do senhor...

Em tempo, tinha pedido a meu pai que não tivesse nenhum piti (pelos deuses!) no inverno. Quem me conhece, sabe que coloco um casaco, mal o termômetro aponta os 20 graus. Pois então... amigos em alerta para me emprestarem roupas para o inverno europeu. Destaco uma roupa para esquiar, toda em vermelho, acolchoada, que coloquei na mala, por via das dúvidas. Não podia me imaginar andando pelas ruas de Braga, com roupa de esquiar totalmente vermelha, há quase trinta anos atrás, quando a cidade era praticamente um vilarejo, perto da modernidade de hoje. Mas o medo do frio era tão grande que a coloquei lá, no fundo da mala. Mal sabia eu que se transformaria no meu uniforme diário, tal o frio que fez em Portugal naquele ano...

Mas vamos aos fatos: passagem em punho, aterrei no Porto alguns dias depois e, como conhecia bem aqueles caminhos, não tive problema algum para chegar a Braga, num taxi de 40 minutos. Entrando em casa, fui direto ao encontro de meu pai, passando quase sem perceber por duas adolescentes, que, pouco depois, soube serem as meninas encarregadas pelos primos bracarenses de cuidar de suas necessidades.

Cuidar de suas necessidades? Se eu não fosse uma pessoa muito educada, criada em colégio de freiras, diria “puta que o pariu” (que aliás, deveria deixar de ser um impropério, já que virou nome de um bairro na cidade Bela Vista de Minas. Mas voltemos ao texto). Meu pai estava num pequeno quarto do primeiro andar (o seu tinha pegado fogo – conto detalhes, depois), semi-consciente. Na verdade, prefiro dizer semi-inconsciente - um melindre lingüístico, mas que, para mim, faz toda a diferença. Ao meu ver, disse:

- E você veio no inverno, não é minha filha?

E logo depois, perdeu o rumo da prosa, falando coisas desconexas.

O quarto cheirava mal, muito mal... quem leu o Cortiço, de Aluisio de Azevedo, sabe do que estou falando. Quem não leu, imagine o que quiser. Algo assim bem patético e horripilante fica perto da verdade. Magérrimo, totalmente sujo, pois as donzelas, é claro, não cuidavam de sua limpeza corporal, apenas o alimentavam, segundo me disseram. Eram meninas e ele homem, “estás a saber?” O que ele come? Uma sopa. Uma sopa que eu vi: de couve, só couve... talvez boiassem umas batatas. Há quantos dias, não sabia. O que eu conseguia ver era algo como um pedacinho de ser, jogado na cama. A primeira coisa que fiz, foi chamar um médico, vasculhando a carteira de endereços de meu pai. Depois eu soube que quem escolhi era mais um daqueles médicos com quem ele já havia brigado e, turrão como sempre fora, não teria tomado remédio algum. Mas isso não importou à ética médica, pois ele nem comentou o fato, apenas disse que estava a caminho... e chegou rapidíssimo. Deve ter sido pelo tom da minha voz. Santo médico. Eu estava tão sob choque que nem lhe pedi desculpas pelo estado de meu pai, por não ter tido tempo de fazer a higiene de praxe. Era fácil perceber a urgência de minha solicitação, roupa de viagem e mala ainda abandonada na sala de entrada. Acho que o médico entendeu e, se não entendeu na hora, entendeu à noite, quando meu pai já estava todo cheirosinho. O fato é que eu estava com medo que meu pai morresse a qualquer minuto, tal o estado em que se achava. Mas, como diz o povo, vaso ruim não quebra. E não foi mesmo daquela vez. O diagnóstico foi simples: completamente desidratado com necessidades básicas de atendimento caseiro, sem nenhuma infecção ou inflamação. Traduzindo: abandono e maus tratos. Agradeci ao médico como quem agradece a um deus e ele prometeu voltar à noite.

A sessão limpeza, para vocês terem uma idéia, incluiu uma tesourinha para cortar os pelos íntimos, para, só então, conseguir lavar a região, tal era a situação que o abandono havia alcançado por ali. Trocar os lençóis sujos de tudo que se pode imaginar, desde restos de comida, como outros tipos de restos, foi fácil, pois eu consegui levantar meu pai no colo (eu, pesando apenas 44 quilos na época, levantando, sem sacrifício, meu pai que deveria estar pesando menos, provavelmente...). Enfim, coloquei o velhinho cheirando como um bebê, barba feita, roupas limpas e com uma sopa decente no estômago. A cabeça continuava pirada, falando coisas que nem Deus entendia. Mas reclamava pela prisão de Manuel, queria vê-lo atrás das grades, era o que pedia, entre as poucas coisas que a consciência deixava escapar. Que coisa incrível... e eu nem podia questioná-lo, pois ele não sabia me contar o que tinha acontecido.

Mal fiz tudo isso, quando pensava em atender a minhas necessidades básicas, de quem acaba de chegar de uma viagem de mais de 10 horas, recebo o seguinte telefonema:

- Priminha, sou eu, Manuel, estou sendo procurado pela polícia. Preciso falar com a prima, com urgência, mas cuide de não ser seguida. Encontre-me amanhã, às 10. Saia de casa, tome a direita, siga pela segunda à direita até o final, vire à esquerda e encontrará um bar, com um homem de chapéu preto, à porta. Ele estará a conduzi-la. Cuide de não ser seguida, não quero ser preso. Preciso de sua ajuda. Tenho os primos de Braga e a polícia a minha busca. Não confie nas meninas que aí estão, pois são da confiança deles. Estou nas mãos da prima.

Tudo isso, evidentemente, falado em português do norte, ao desespero. Mas o amor, a angústia, a ansiedade intuíram o conteúdo da mensagem e, principalmente, o roteiro traçado. Ok, pensei, peguei o fio da meada. Menos mal. Como o primo sabia que eu chegara? Com certeza, sozinho de todo não estaria, pois eu mal chegara e nem vira os tais primos bracarenses e ele já chegara a mim, em primeiro lugar.

Colocar o telefone no gancho e perceber que aí estava a minha aventura, a tal aventura pedida há muitos anos atrás, foi uma questão de segundos. Não sei se agradeci, sei que um frio geladérrimo subiu de pronto pela minha coluna, alcançando o âmago do meu estômago. Liguei o estado de alerta. A gente tem um on-off não sei onde, mas tem. E uma consciência de que eu não poderia errar o roteiro da empreitada se apossou de mim. Não tinha recebido o script, mas intuí, imediatamente, que eu era a peça central da trama. Tal como havia pedido. Não fosse trágico, seria sublime... mas era trágico: a máfia existia e o cheiro de podre que eu expulsara do quarto de meu pai, tomava um outro espaço, mais pontual e consistente. Como no filme, havia pessoas em perigo. E estava tudo em minhas mãos, como um ponto-chave de tudo. Isso explicava o frio geladérrimo, o medo e, também, a coragem.

Mais meia hora, quando ensaiava tomar um banho e entrar no meu quarto, a campainha toca e entram pela minha porta os gentis e solícitos primos que eu nunca tinha visto... e olha que conhecia um bocado de minha família por lá, nas não poucas idas a visitas a meu pai. Onde esses tais tinham se metido até então? O fato é que contaram uma novela de traições e desenganos, de heroísmos jamais vistos, na defesa de meu pai. Muito esquisito... mas eu não tinha dados para duvidar de ninguém.

Como entraram, saíram, colocando-se à disposição de tudo e de todos, dizendo que eu poderia ficar tranqüila, pois estariam ali, para cuidarem de tudo, tão logo eu os ajudasse a prender o tal Manuel e ter a documentação perdida de volta e todos os preciosos pertences que ele roubara. Que eu ficasse tranqüila, no Brasil, que, daí por diante, cuidariam de tudo.

Com salamaleques que eu nunca tinha recebido em corte alguma, se despediram de mim, como quem se despede de uma princesa, dizendo-se valentes como os mosqueteiros do rei (eram três por sinal: pai e dois filhos).

Isto posto, finalmente, subi ao meu quarto, vistoriei a casa: o quarto de meu pai, colado ao meu, totalmente destruído. O que acontecera? Pegou fogo, informaram as adolescentes. O cobertor elétrico pegou fogo durante uma noite daquelas e, por milagre, meu pai, embora já meio inconsciente saira nu do quarto salvando-se. Eita portuguesinho danado... os bombeiros foram chamados e, felizmente, o fogo não afetou o resto da casa.

Entrei no quarto como um detetive... mas as paredes não me disseram nada.

De brinde, o fogo tinha afetado o aquecimento central da casa. Apenas três cômodos tinham aquecimento: meu quarto (os deuses existem...), o que meu pai estava e a cozinha (onde as meninas passaram a dormir). Rodei pela casa tentando ver não sei o quê. Resolvi assuntar a cidade e me preparei para sair. Não havia mais nada a fazer até as 10 horas da manhã do dia seguinte... um século. E quem conseguia se deitar para descansar? Eu estava literalmente ligada na tomada e a minha luz “on” piscava em vermelho sem parar. Me vesti e saí. Um pé fora e outro dentro: frio de rachar. Não tinha jeito... se quisesse sair tinha de ser mesmo com a roupa de esquiar. E foi o que fiz. Braga que se danasse, o meu corpo pedia aquecimento. Me convenci psicologicamente de que estava vestida como qualquer outro ser vivente e fui em frente. Ignorei os olhares da cidade sobre este ponto vermelho andando pelas ruas. Imaginem uma cidade do tamanho de Copacabana, com muito menos habitantes, onde quase todos se conhecem e uma estranha, com sotaque de brasileira entrando e saindo dos lugares, com aquela roupa de Alpes Suiços. Aluguei um carro. Sabia que iria precisar de um. Meu pai, entre os pertences, havia vendido o dele.

Aliás, o aluguel do carro é uma novela à parte e vale a pena ser contada. Primeiro, que eu nunca tinha dirigido aquela marca. Mas era o que melhor tinha de aquecimento disponível. Uma aulinha rápida para os comandos principais foi, por si, uma aula de lingüística. O ponto morto arrancou risos ininterruptos do dono da loja. Claro, por lá se denomina ponto zero. Marcha ré, com certeza deve ser um palavrão, pois ele me olhou com cara de parede. Para andar para trás, nada mais justo do que a marcha atrás. Muito lógico. Onde se liga o aquecimento e lá vamos nós. A distância entre o centro da cidade e minha casa era de dois quilômetros, no máximo. O problema era apenas entender o trânsito. O dono da loja, muito gentil, me explicou o intrincado roteiro para ir da Praça Central à Av. da Imaculada Conceição.

Já perguntou a um português como se vai a algum lugar? Se perguntou, sabe o que passei. Se não perguntou não morra sem ir a Portugal, só para passar por essa experiência. Para encurtar a prosa, fiz tudo exatamente como ele mandou e fui parar exatamente no mesmo lugar: em frente à loja. Ele saiu de lá pensando que havia algo errado com o carro. Não. Não havia. Havia algo de muito errado com uma brasileira tentando entender a lógica portuguesa. Ouvi todo o manual de explicações e deu no mesmo: acabei em frente à loja de novo, só que, desta vez, não parei. Não sei se de vergonha ou de irritação. Perguntaria a outra pessoa, mas foi necessário mais de uma e... a cada vez que parava para perguntar a um transeunte, abria o vidro da janela e o carro se enchia de ar gelado. Há quem possa? Fiz isso algumas vezes, sem sucesso... não dava em lugar algum. Saira da loja às 17horas e já eram quase 18. Restava uma saída drástica: seguir as setas para a cidade do Porto, pois, vindo do Porto, eu sabia chegar em casa. Pode isso? Pode. Quando você se sente falando a mesma língua como se falasse uma língua estrangeira, tudo é válido. E lá fui eu para o Porto, em busca do primeiro retorno. Retorno, o que é isso? Para que precisam eles de um retorno na estrada? Provavelmente, como as cidades quase se encostam umas nas outras, bastaria entrar numa vila daquelas para fazer o retorno lá por dentro. E eu iria me expor a entrar em alguma outra arapuca de cidade àquela altura para pedir qualquer informação, de novo? Nada disso. Nem que tivesse de ir ao Porto... e rezar para conseguir sair de lá, seguindo as placas em direção a Braga. Enfim, um retorno dos deuses. Deve ter sido providenciado pelo tal anjo que havia engendrado essa trama toda para mim, com minúcias de detalhes dramáticos, incluindo esse. Mas, tudo bem... o importante é que, pegado o retorno, me senti a mulher maravilha e cheguei em casa certinho, às 19h. Um passeio à toa, para quem tinha atravessado o Atlântico durante a noite e chegado a Portugal naquela manhã.

Nunca saboreei com tanta alegria uma sopa de legumes bem quente. Aliás, feita por mim, senão, seria a de couve mesmo. Alimentei meu pai e esperei a visita do médico. Chegou às 20.30 e, depois de examinar o paciente já cheirosinho, sorriu:

- O Sr. Joaquim é muito forte, fique tranqüila. Agora que a menina está aqui, com certeza estará bem cuidado.

Acompanhei-o até a porta. Ao se despedir, não se conteve:

- Soubemos do incêndio... é bom que a menina esteja aqui.

A observação entrelinhavada me pegou de surpresa. Se havia uma pulga atrás da orelha, com certeza, não habitava só a minha orelha... Me despedi com aquela cara de sonsa de quem, se entendeu, não deu por entendido. Bem-vindo o médico, mas não sabia se podia confiar no homem. Acho que ele entendeu, sorriu meio sem graça, mas apertou minha mão com confiança. Agradeci. Acho que até hoje ele não sabe se agradeci pela visita ou pelo aviso.

Não é preciso dizer que dormir não estava no meu cardápio. Eu não sei se dormi nesses dez dias que se seguiram... devo ter dormido, pois dizem que a gente pira, se não dorme. Mas... não me lembro... acho que eu desmaiava de vez em quando. Quem pode dormir, se ganha de presente uma aventura dessas? Cada minuto é absolutamente essencial. O que posso dizer é que, nesta primeira noite, contava os minutos para as dez horas da manhã.

Amanheceu. Eu soube pelo relógio, é claro, pois estava escuro como breu. Inverno europeu. Desci, cuidei do meu pai, que falava uma bobagem atrás da outra. O médico havia dito que ele, aos poucos, voltaria ao normal. Deuses o ouçam. E como será que ele sabia disso? Sei lá. Uma coisa de cada vez... naquela hora era a vez do Manuel. Comi e, para despistar, disse às meninas que iria ao centro da cidade. Elas perguntaram por quê. Me fiz de surda e saí... Não estava com a roupa vermelha, pois chamaria muita atenção. Descobri, de manhã, que eu vestira o papel do suspense e coloquei uma meia de lã comprida (uma das emprestadas) e duas calças, uma por cima da outra. Idem vários casacos e um pulôver por cima de tudo. Queria parecer discreta. Uma mancha vermelha andando por aí é logo percebida e reconhecida. De fato, eu vestira o papel. Nem me dava muito conta disso, mas vestira. Dei umas voltas pelo quarteirão antes de tomar o rumo certo, rezando por ter entendido as instruções do dia anterior. A experiência com o roteiro do carro me entorpecia a confiança. Mas fui em frente. Não queria ser seguida e consegui me certificar disso. Tomei a direção do encontro: direita, direita, esquerda, homem de chapéu preto. Tudo conferiu. Alívio e tensão. Ao me aproximar não sabia o que dizer. Não estava explícita uma senha no script... eu tinha de improvisar. Arrisquei:

- Você espera alguém?

Resposta imediata:

- Sim, a menina.

Sorri aliviada. Ele abriu a porta de um bar bem português: balcão, mesinhas antigas, dessas de filmes de bandido e mocinho. Ao fundo, um homem, de capa preta e chapéu idem, cabeça baixa, sentado, corpo voltado para a porta. Até aí, tudo bem... os aldeões se vestem assim, ao norte de Portugal (ou se vestiam na década de oitenta). Entrei, olhei em volta... mais ninguém. O homem de fora, continuou lá fora, parado em frente à porta. O homem da capa levantou os olhos e sorriu... olhos de lágrimas, sinceros, aliviados, abençoados. Dali para o abraço, não houve tempo ou espaço. Não importava o mundo, importava o encontro... e nós dois sabíamos o que habitava ao fundo, sem palavras. Num relance, ainda na entrada, ao vislumbrá-lo, confirmei apenas que nunca teria havido qualquer dúvida em meu coração.

Nos sentamos frente a frente, silenciosos, cúmplices, atores do drama, peças principais. Meu pai se tornou pequeno, motivo, instrumento, jargão. O mundo se tornou ínfimo diante da grandiosidade daquele homem, trinta anos mais velho do que eu... poderia ter sido meu pai. Sua alma sempre quis ser meu pai. E esse era o olhar que se desprendia dele para o meu rosto, conferindo a cria, que carregara no colo. Suavidade e doçura de aldeão, semi-analfabeto nas letras, PHD em tudo mais. Eu teria ficado assim, embevecida diante da grandiosidade daquele homem horas a fio. Eu não me mexeria, se ele não se mexesse. Acho que ficamos assim, esperando um ao outro, por algum tempo.

O homem da porta entrou e se aproximou dizendo:

- Manuel, tens pouco tempo.

Desfez-se o encanto, mas jamais o encantamento que trago vivo em meu coração até hoje. O homem saiu novamente. Manuel abriu o casaco e se transformou num desses homens que sacam de tudo de diversos e incontáveis bolsos. Foram surgindo na mesa: cadernetas de contas bancárias, o relógio de ouro de meu pai, dinheiro vivo, documentos, passaporte...

Em poucos minutos resumiu o que fora a invasão da família bracarense, em dias que meu pai não estava bem de saúde e, bastante depauperado. Por todo o tempo, até o desenlace da noite da confusão, papai contara com sua presença, aos pés de sua cama, como havia me prometido. Ocorre que esses primos, que ele também mal conhecia, e que haviam se transferido para Braga, começaram a visitá-lo com freqüência e haviam colocado as duas meninas lá, a guisa de cuidarem melhor da casa. Coincidência ou não, meu pai piorava dia a dia. Foi quando, numa noite, eles foram em grupo, tentando convencer meu pai que o bronco Manuel ali estava para explorá-lo, já que não saía da casa dele e que por sua ignorância não tinha condições de gerenciar os bens. Queriam convencer meu pai a passar-lhes uma procuração, já que eles, mais cultos e preparados, poderiam assessorá-lo melhor. Meu pai sempre fora muito esperto com esse tipo de coisa e como Manuel o seguira por toda a vida, no princípio, ficou confiante e não pensou que pudesse dar em coisa alguma. Mas as noites se sucederam e meu pai não melhorava, pelo contrário. E eles voltavam, insistiam na procuração, queriam ver as contas dos bancos e Manuel começou a irritar-se, pedindo que deixassem o padrinho em paz. Não deu outra. Numa dessas noites, irritaram-se todos, disseram que o estavam expulsando de lá e que não aparecesse mais. Foi então, que, vendo que estaria mesmo sendo expulso, deu a volta à mesa da sala, palco do drama, abriu a gaveta onde sabia que meu pai guardava todos os pertences procurados, que eu mesma lhe indicara há anos atrás, passou a mão em tudo que pode e, literalmente, saiu correndo, perseguido pelos três, os tais mosqueteiros. Sumiu nas trevas da noite, escondeu-se em casa de amigos, soube que estava sendo procurado pela polícia e pediu que alguém avisasse à tal vizinha que precisava de minha presença lá. Explicado o telefonema que recebi no Brasil.

A coerência: meu pai, tendo presenciado o suposto roubo, também pensava em prendê-lo.

A incoerência: o que eles poderiam lucrar com isso, se continuavam sem acesso às contas de meu pai? Ledo engano: soube que, finalmente, havia uma procuração em suas mãos. Meu pai dando uma procuração era coisa inédita para mim! Eu, a pessoa em quem ele mais confiava no mundo não tinha uma... muito estranho...

Voltemos ao bar e ao relato: Duas noites depois do ocorrido, houve o incêndio do quarto, para desespero do Manuel, mas eu já havia sido avisada e ele soube que eu estava a caminho. Então, só lhe restava esperar. Exposto o drama, completou:

- Priminha, cumpri o prometido. Sou um homem honrado, mas estou sendo perseguido pela polícia. Conto com sua ajuda para limpar o meu nome.

Dito isso, empurrou para longe de si, sobre a mesa, em minha direção, os pertences do meu pai. Meus olhos pousaram nas mãos rudes daquele camponês, irmão gêmeo da ética, da lealdade, da honra, da sensatez. Suas lágrimas corriam e eu já não sabia se da alegria por me ver ou do sofrimento por que passava. Talvez por ambos.

Perguntei-lhe se tinha um advogado. Sim, tinha. Os amigos o aconselharam a buscar um, tão logo tudo tinha acontecido. Eu lhe disse que não conhecia as leis de Portugal e que precisava, em primeiro lugar, me aconselhar com esse advogado.

Era em Vila Verde, perto de Braga, mas precisava alimentar meu pai. Deixei-o ali, fui para casa, cuidei do que precisava, peguei o carro e saí novamente. Uma das moças prontificou-se a ir comigo, para me ajudar. Eu não lhes dissera para onde ia... para que tanta solicitude? Disse-lhes que cuidassem da casa e de meu pai, que não se preocupassem. Algo no ar estava bem claro: a trama, a traição, a insensatez. Disse-lhes que a qualquer momento, o médico chegaria e que deixassem meu pai em paz. Pura mentira, mas foi o que me ocorreu no momento. Eu não podia estar em dois lugares ao mesmo tempo.

Vila Verde: inesquecíveis momentos. O advogado atendeu-me de toga (!!!). Sua mesa mais parecia a mesa de um juiz, imensa e toda entalhada em madeira escura, antiga. Lembro-me de sua barba grisalha muito bem aparada e do sotaque puro e limpo português. Estava longe de parecer um filho de aldeão, o que seria o mais natural em Vila Verde. Mas a lingüista cedeu rapidamente o lugar à filha, à prima, à heroína da história e, rápida, me vi contando ao supremo que tudo que o primo havia dito a ele era a mais pura e plena verdade e que eu precisava salvá-lo daquela situação.

Foi então que o letrado bacharel me informou que as contas bancárias estavam sendo usadas pelos tais primos, à custa de uma tal procuração reconhecida com as impressões digitais do meu pai, considerado incapaz de assinar. Só me faltava essa. Eles tinham ido a minha casa e me ocultaram a informação! Explicada a atuação da máfia, inclusive os salamaleques ao constatarem minha inesperada visita. Canalhas. Não preciso dizer do rombo que constatei, mais tarde, nas contas do meu pai. Naturalmente, tudo à guisa de atendê-lo em suas necessidades: pagando as moças e a sopa de couve...

Já escrevi, parágrafos atrás que, se eu não tivesse sido criada num colégio de freiras, como uma moça bem educada... bem... você pode imaginar quais palavras vieram à minha cabeça... mas só à minha cabeça, pois, diante de tal figura magistral eu só conseguia ter o comportamento de uma princesa, adida da nobreza, à altura de suas considerações. Engoli em seco, pronta para as exigências requeridas. Perguntou-me se eu conseguiria uma assinatura do meu pai, numa procuração para mim. Se eu conseguisse, poderia procurar a polícia, dizer da honradez do Manuel, dizer que tudo fora um mal entendido e que estava solicitando a cassação da procuração existente (naquele momento, jurei a mim mesma que conseguiria). Em seguida, poderia mover um processo daqueles contra os tais, que acabariam bem mal das pernas, com certeza. Foi então que eu lhe disse que levaria meu pai para o Brasil o mais depressa possível e perguntei-lhe se tal atitude poderia prendê-lo e também a mim, em Portugal ou exigir a nossa volta lá, eventualmente. Poderia, dependendo dos trâmites da justiça.

Voltei-me para Manuel, provavelmente, seco por uma revanche contra a tal quadrilha e ansioso por ser reconhecido em sua honradez. Perguntei-lhe se poderia ignorar toda a parte do processo, desde que limpasse o seu nome, pois, no momento, estava falando mais alto cuidar de meu pai e isso só seria possível trazendo-o para o Brasil, sem pendências. Eu não poderia ficar lá e, tampouco, ele poderia passar a viver com meu pai, com a família e seus afazeres em Vila Verde. Não era justo.

O olhar doce e puro de Manuel só poderia ser acompanhado de uma resposta:

- Sim, se a priminha achar que é melhor para si.

A resposta veio pronta, sem meneios, sem pensar duas vezes. Limpa, pura, direta. Desafio você a me apontar outro homem desses dando sopa por aí. Escorraçado, perseguido, insultado... íntegro, sensato, superior.

Consegui a procuração assinada, pois em três dias, meu pai estava em condições de assinar, na presença do escrivão, certamente, com duas testemunhas, como era necessário em tais circunstâncias. Tinha de ser algo tão solene e poderoso que pudesse agir rápido sobre outra, de menos porte, já existente. E você não imagina o que eu passei para conseguir uma assinatura de próprio punho e de própria confiança de meu pai, por pura convicção de que não acreditava em procurações e porque ainda não estava entendendo direito o que estava acontecendo. Mas consegui. Consegui cassar a procuração da quadrilha. Para isso, apresentei-me na delegacia, pronta para um interrogatório, que desafiou a fundo minha inteligência feminina. Mas, afinal, a mocinha da história era eu. E consegui me fazer de sonsa para o delegado, quando me perguntou pelo incêndio (putz! Braga inteira sabia do incêndio no quarto do Sr. Joaquim... e Braga inteira achava aquele incêndio esquisito...). Consegui repetir-lhe o que seria a desculpa mais deslavada que a quadrilha arranjou, única peça da trama urdida por eles que foi ardilosamente aproveitada por mim para poder não abrir um processo:

- O cobertor elétrico pegou fogo, dizem que isso é muito comum.

O delegado, tenho certeza, porta-voz de toda Braga, quase indignado redargüiu:

- Você não pretende abrir um processo contra eles, nem que seja por causa de uma procuração suspeita?

Cara de sonsa, outra vez:

- Não. Creio que, naquele momento, fizeram o que acharam que era o melhor. Eu apenas quero torná-la inválida, pois já estou aqui e não há necessidade de outra. Não o faço pessoalmente, pois não os conheço e me sentiria constrangida.

Contra evidência de sonsice ou burrice de tal tamanho, nada mais havia a fazer. Lembro-me de vê-lo recostar-se desanimado em sua cadeira, como um cão de caça que perde sua presa.

Explicado que teria havido um tremendo engano quanto a um suposto roubo feito por Manuel, pois todos os documentos estavam em minhas mãos, fui dispensada da delegacia, com a mesma cara de sonsa, para desespero da lei. Em nome da saúde do meu pai e da urgência em resolver essa parte, deixei que a lei da vida cuidasse do resto.

Nunca soube o que aconteceu com a quadrilha. Apenas os vi, na hora exata em que já estava saindo para o aeroporto. Entraram em casa, perguntaram como as coisas ficariam, se eles cuidariam da casa enquanto meu pai estivesse fora (mal sabiam que meu pai jamais voltaria). Tudo assim, com aquelas caras de anjos que nunca foram. Receberam como resposta que não se preocupassem, que a procuração estava sendo cassada e que eles seriam informados pela polícia disso. Pode você imaginar a cara deles? Não, não pode... tenho-as retratadas na minha mente, como uma marca de vitória conquistada. Despedi-me dizendo que a vida se encarregaria de cuidar do que tinha acontecido. Não era uma maldição, mas chegou perto, confesso. E senti que ficaram com medo. Bem feito.

Desnecessário dizer que, dias antes, fiz questão de passar horas a fio caminhando de braços dados com o Manuel por toda Braga. Vestida de vermelho, pagando o preço do frio pela honradez. Passeamos muito, entramos em todos os bancos, pedi que ele sacasse quantias que eu mesma poderia sacar, já que era a filha e tanto eu quanto ele tínhamos os nomes em conjunto com meu pai nesses bancos. Mas queria que toda a população soubesse do homem honrado que seguia ao meu lado, para que qualquer dúvida jamais pairasse por toda parte, até a mais oculta viela da cidade, e que ele pudesse, orgulhoso de si mesmo, caminhar livre de suspeitas por todo Portugal. Voltei a Vila Verde, almocei em sua casa, passeei grudada como um carrapato em seu braço, também para que todos vissem. Claro que, a esta altura, a filha de seu Joaquim, que passou a ser bem conhecida por aquelas bandas, o colocava acima de qualquer suspeita. Ao contrário, imagino o que a cidade estaria falando da quadrilha. Creio que esta foi a única, mas a doce vingança de Manuel.

Voltei para o Brasil, trouxe meu pai, que faleceu em paz, seis meses depois. Trago na lembrança a cátedra do advogado, as expressões de espanto do delegado, a roupa vermelha de esquiar, como panos de fundo do olhar tranqüilo, doce, gentil, corajoso de Manuel.

Até hoje, recebo uma carta por mês, desse quase iletrado primo, das quais reproduzo começo e fim:

- Minha priminha Eulalia, eu muito istimo que estas letras a vão encontrar de muita saúde. Que nos na data istamus bem graças a Deus (.........) e sempre guardo minha priminha no coração e espero cá por sua resposta e a Deus. Manuel.

A Deus – de quebra, uma aula de etimologia... até filologia esta doutora das letras aprendeu com esse primo...

Sei as palavras das cartas de cor, pois é isso que ele sabe escrever. Mas mesmo sendo as mesmas, são sempre novas para mim. E aguardo a cada mês, que estas mesmas linhas cheguem, prova de que ainda posso sabê-lo por perto, mesmo que tão longe.