sábado, 27 de março de 2010

O CRESTA



Trabalhei por 12 anos como professora em uma universidade particular. Lá, fui professora de Grego e de Cultura Clássica (essa vale um conto à parte), de Língua Portuguesa e de Linguística. Não ao mesmo tempo, é claro, embora o grego estivesse presente como pano de fundo, pois foi o que me valeu o início do contrato. Isso se deu de 1974 a 1986.

Felizmente, peguei o período de auge do Curso de Letras dessa Instituição e saí por conta do concurso que tinha prestado em uma Universidade Pública, em 1986. Saí na hora certa, pois o curso vinha ladeira abaixo e para quem gosta do que faz isso é de uma tristeza sem tamanho. Sentíamos que não tínhamos como segurá-lo, pois todos os incentivos da direção da Universidade estavam sendo direcionados para outra área de ensino. Hoje, pelo andar da carruagem, nem sei se o curso ainda existe.

O importante é que, enquanto estive lá, a minha vida deu panos para mangas. São tantas as histórias que nem saberia por onde começar. Assim, escolhi pinçar uma delas, ocorrida com uma das mais queridas turmas que tive, uma de Português-Inglês.

Os professores, geralmente, não ficavam mais de dois períodos corridos com uma turma. Podíamos até encontrá-la, novamente, em outra disciplina ou mais adiante, mas era praxe mudarem os professores para que pudessem conhecer a diversidade. Parece que havia entre mim e esta turma, no entanto, um encantamento mútuo, uma atração irresistível e refratária a qualquer mudança. O fato é que fiquei os dois primeiros períodos por pura coincidência ou conveniência de distribuição de carga horária por parte da coordenação. No terceiro período, confesso que fui pedir só mais um periodozinho. Veio como prêmio. Na quarta vez, houve um abaixo assinado da turma pedindo a minha permanência e foi a única vez na vida que me enfiei de cabeça para estudar uma disciplina que eu nunca tinha dado, uma tal de Gramática Histórica, só pelo prazer de ficar com eles. Na quinta vez, a coordenação mesma já estava disposta a me manter na turma, mas... cdf como eu sou, fui eu mesma quem se sentou com os alunos para convencê-los (e a mim também...) que deveriam experimentar outros mares.

Você pode imaginar o que é uma empatia de quase dois anos. Quando eu entrava na sala, sentia a temperatura da turma no ar ao percorrer o curto caminho entre a porta e a mesa.

Naquele dia, a turma estava, digamos... esquisita. Me virei para o quadro negro, apaguei todos os escritos da aula anterior. Era o tempo de eu sentir a turma mais de perto, além de não gostar de escrever por cima de outras informações. Isso sempre me incomodou e sempre ensinei a meus alunos, futuros professores, a jamais saírem da sala sem apagarem o quadro negro, uma gentileza ao colega que viria a seguir. Deve estar na conta das delicadezas de minha educação rigorosa, mas o fato é que é mesmo uma beleza você entrar numa sala e o quadro estar limpinho, esperando por você. Quem é professor sabe disso. Pois então, estava eu apagando os escritos da aula anterior e sentia a turma, enquanto isso. Eles estavam com bicho carpinteiro nas cadeiras, inquietos mesmo. Não resisti. Me virei e perguntei de frente:

- Afinal, o que há com vocês?


Silêncio.

- Vocês estão preparando alguma?

- Não.


- É sobre algo que eu possa saber ou vai ficar por isso mesmo?

- Poder saber você pode, mas é um bocado delicado. E começaram a rir, como quem já havia rido muito antes e a lembrança abrisse, de novo, as comportas do coração.

- Mas afinal, o que houve?

- Tivemos um probleminha com o Professor LF.


Ora, o tal professor LF era um dos muitos professores portugueses que aportaram no Brasil por conta da independência das colônias portuguesas da África. Ocorre que os portugueses tiveram de abandonar tudo às pressas e voltarem para Portugal, expulsos que foram pela famosa independência das colônias africanas, lá pelos anos de 1975 ou 77 não me lembro bem. A coisa tinha ficado preta e me lembro muito disso, pois a revolução foi em torno do mês de abril e eu fui em julho visitar meu pai que morava em Braga. A confusão ainda era tamanha que, quando desci no aeroporto de Lisboa, centenas de portugueses exilados ainda estavam acampados nos saguões e dependências do aeroporto. Enfim, foi mesmo difícil acomodar tantos portugueses em um país tão pequeno. E, vocês sabem da generosidade do povo brasileiro. Acolhemos muitos deles com os braços e corações abertos, dividindo nosso espaço acadêmico com esses exilados de tudo e de todos.

Não fosse o ar um tanto arrogante que, em geral, esses colegas apresentavam, como se eles é que estivessem fazendo o favor de serem acolhidos em nossas universidades, teria sido perfeito. Apesar desse “senão” os acolhemos bem, com o natural carinho brasileiro, bastante tolerantes com esses colegas de além-mar desabituados a nossos costumes. Entre os hábitos mais difíceis de convívio, custava-lhes entender nossa maneira de ser na academia universitária, nosso contato estreito com os alunos, nossa forma descontraída, termos em comum os mesmos elevadores (lá havia elevadores só para os professores), idem os papos pelas escadas e, porque não dizer, vez por outra a mesma mesa de bar para um chopinho descontraído, sem que isso jamais desmerecesse a seriedade do trabalho acadêmico. Poucos foram os que se adaptaram e, justiça seja feita, quando conseguiam, tinham a nossa maior admiração. No fundo, agora, mais madura, fico imaginando como muitos desses colegas sofreram com a necessidade dessas adaptações. Não deve ter sido nada fácil enfrentar os costumes e o clima brasileiros.

LF era um desses mais rígidos colegas. Acresce que tinha um sotaque terrível e dava aula de História Externa da Língua Portuguesa. Para você entender melhor os fatos a seguir, preciso explicar um pouquinho o que isso significa: história externa refere-se aos acontecimentos históricos que acorreram na Península Ibérica, mais especificamente, em Portugal, e que poderiam ter influenciado as mudanças lingüísticas, a história da língua por influência externa. Cito, como por exemplo, oito séculos de invasão árabe e as influências que o convívio com esta língua pode ter trazido à nossa, quer sob o ponto de vista de palavras importadas, quer das estruturas de frases. Isso era a matéria de LF. Eu dava História Interna, ou seja, a descrição da gramática, propriamente dita. A tal matéria em que eu estava enfiando a cara só para ficar mais esse semestre com a turma, já que não era a minha especialidade.

Eu tinha três horas de aula por semana com eles e entrava logo depois das duas aulas do LF, às quartas-feiras de manhã se não me engano. Tudo sempre correra às maravilhas, mas naquele dia, com certeza, alguma coisa muito diferente tinha acontecido.

Puxei uma das cadeiras desocupadas dos alunos, me sentei junto à primeira fila e pedi que abrissem o jogo. Foi então que eles se dividiram por contar ou não contar, entre uma gostosa gargalhada e outra, quem sabe por puro descontrole ou, talvez, para aguçar a minha curiosidade e aumentar o suspense. Finalmente, me contaram o que se segue:

Eles estavam estudando a invasão da Península Ibérica pelos chamados bárbaros. E a forma que o LF dava aula era aquela bem típica do professor de antiga geração que fazia da aula um “ditado”. Na prova, caía exatamente o que ele tinha dito, não adiantava estudar nos livros. Os alunos, então, copiavam tudo, tim-tim por tim-tim, como taquígrafos, e depois ajudavam uns aos outros a completarem as informações. Gloria era uma excelente aluna, e conseguia juntar dois atributos valiosos: era aplicadíssima e, também, engraçadíssima. Sem contar com a forma esdrúxula com que se vestia. Quem a visse, juraria que ela estaria cursando Letras por farra. Parecia que estava indo a uma discoteca, ou melhor, chegando de uma, já que as aulas começavam às 7h30min. Ledo engano: quando sentava para escrever, era difícil tirar menos de 10. Incrível. Pois bem, foi Gloria quem conseguiu suster o riso para contar:

- É que esse professor tem um sotaque do cão e é muito difícil entender o que ele diz. Anotamos tudo, nos ajudamos uns aos outros, pois ele fica muito irritado, quando pedimos que ele repita. Mas hoje não dava mesmo para entender. Ele estava contando sobre a invasão dos bárbaros e nos disse:

- Então, vieram os godos, os visigodos... o cresta...

- “O cresta”,
acrescentou ela para mim, que diabo de povo seria esse? Além do que, parecia erro de concordância: os godos, os visigodos... o cresta? Não seriam os crestas? Como não entendi, me armei de coragem e perguntei:

- Professor, me desculpe: os godos, os visigodos... depois? E ele repetiu já um pouco intrigado:

- Os godos, os visigodos... o cresta...


- Aí, acrescentou Gloria, fiquei na mesma e pedi ajuda a Patricia (sentavam-se próximas). Ela não tinha entendido também. Armou-se de coragem e pediu que ele repetisse. E ele, que já estava irritado, levantou a voz e repetiu:

- Os godos, os visigodos... o cresta...

- Outro aluno, veio em nosso socorro, pois afinal, ninguém estava entendendo e, com certeza, era assunto de prova:

- O cresta, professor?


LF pos-se diante da turma, em fúria, segundo eles, e redargüiu a plenos pulmões:

- O cresta... o que sobra, o que fica!!!

Quem diria: “u kresta” = “o que resta”, referindo-se ao restante de outros invasores, dito assim, num genuíno e carregadíssimo sotaque português!!!

Você pode imaginar como a turma teve de se segurar para não cair numa tremenda e estrondosa gargalhada, diante daquela eminente figura de um metro e cinqüenta e cinco centímetros de altura. Pois foi o que fizeram até que o professor saísse de sala e, é claro, sobrou para mim.

A partir daí, não teve jeito: a turma sapecou-lhe, às escondidas, o apelido de “Crestinha”, pois aluno não deixa passar em branco nada, nadica. Aproveitaram o mote e juntaram a ele o metro e cinqüenta e cinco do “ilustre” professor e, em conseqüência, só poderia dar diminutivo, bem ao estilo carioca.

Muitas vezes, meus colegas me perguntaram se eu sabia por que os alunos o chamavam assim, meio às escondidas, pelos corredores. Claro, cúmplice de meus filhotes, eu armava uma cara bem inocente e dizia:

- Coisas de aluno. Quem sabe, um dia a gente descobre...

LF já faleceu faz tempo, como aliás, a maioria dos meus colegas de academia, já que eu era muito mais moça. Quase todos tinham sido meus professores.

Mas os que ainda existem, se lerem este conto, agora saberão.

domingo, 21 de março de 2010

O VIGIA



Se você mora em prédio, certamente tem ou já teve um porteiro, um vigia, um faxineiro, um vizinho, um alguém que futrica a vida de todo mundo e está sempre por dentro das fofocas, quando não é o próprio autor das mesmas.

No meu prédio, essa figura histórica era o Seu Geraldo, vigia da noite. Acresce que sentia uma satisfação particular em ficar circulando por ali, também durante o dia. Como o Sr. José (vulgo baiano ou Zé), nosso porteiro, ele participara da construção do prédio. Conheciam, portanto, todos os moradores pelo nome e sobrenome e guardavam os registros da vida cotidiana, desde sua entrada no prédio até os dias de suas aposentadorias como funcionários, o que já ocorreu há uns pares de anos.

Mas Geraldo dava show de fofoquice. Era mesmo o sacrossanto vigiador do pedaço. Creio que não escolheu por acaso a profissão de vigia. Fazia parte intrínseca de sua personalidade.

Lembro-me de vários momentos em que pude constatar, viver ou ser vítima de seus olhos, ouvidos e bocas (um homem desses não tem uma só boca... tem todos os sentidos perceptivos em dobro).

As melhores delas aconteceram quando me separei, depois de 22 anos de casamento. Tínhamos mudado para o prédio em 1978 e estávamos em 1994. Antes, morávamos em frente, o que, para o Geraldo, deveria dar no mesmo, pois ele não se contentava com tomar conta da vida das pessoas do prédio, zelador de seu cotidiano e seus segredos. Sabia também as histórias de toda a rua.

Como eu entrava e saía do prédio sempre às pressas, era quando esperava o elevador que eu percebia isso. Não havia dia em que Geraldo não estivesse comentando com algum colega sobre algo que sabia dos arredores. Em alto e bom som, diga-se de passagem, e era impossível não ouvir que o cachorrinho da D. X tinha machucado a pata ao esbarrar no vaso, quando não eram coisas mais particulares e invasivas da vida dos moradores. Como ele conseguia as informações, só os deuses sabem.

No que se referia a mim, em particular, a coisa ficava difícil por conta de minha constante discrição e reserva. A par de ser gentil e até brincar com eles, saber de minha vida só lendo nos envelopes das correspondências que eu recebia. E, é claro, pelas horas de saídas e entradas no prédio, com carro ou sem ele, vestida assim ou assado. Só por esses vestígios, por incrível que pareça, ele sabia se eu estava saindo para trabalhar, passear ou fazer compras. E podia, muitas vezes, determinar a hora de saída e chegada. Parecia que tinha planilhas sobre nossas vidas... e acho que as tinha, em sua mente aguçada. Descobri isso eventualmente, quando um de meus alunos, por causa de um atraso meu, me esperava na portaria (eu costumava receber meus orientandos em casa, por conta das consultas a meus livros e outras facilidades para pesquisas que nossas universidades públicas não podiam – ou ainda não podem – oferecer). Ao subirmos pelo elevador, o aluno comentou que o Geraldo havia dito que, às terças, geralmente estou em casa a essa hora, mas que, naquele dia eu tinha ido ao banco e não iria demorar. Como ele sabia que, realmente, eu tinha ido ao banco? E, mais, que não iria demorar? Deduzi, pouco depois, pensando que eu tinha saído de casa apenas com minha carteira e uma conta a pagar nas mãos! Claro, estes pequenos detalhes não passavam despercebidos ao nosso ilustre zelador...

Mas voltemos ao fato da separação que foi feita na maior discrição. Uma saída de casa do ex-marido, tendo levado suas coisas aos poucos, comigo ajudando, em diversas viagens de carro, no decorrer do mês. Enfim, não se parecia em nada com uma mudança.

Isto posto, fui viver o meu cotidiano, sem satisfações a dar, como sempre. Como meu ex-marido viajava muito a trabalho, no começo, sua ausência não foi notada.

Para mim, tanto fazia, nem pensei nesses detalhes. É claro, no entanto, que passei a ter uma vida mais liberada, sem preocupações com a hora de chegar em casa e coisas assim.

Um mês depois, ao voltar de um chopinho com amigos, em pleno sábado, em torno das duas da manhã, estava esperando o elevador e ouvi esta pérola:

- D. Eulalia, o Sr (nome do meu ex) viajou?

De pronto, caiu a ficha. O filme de minha vida no decorrer daquele mês passou como um bólido em minha mente. Eu não tinha me tocado, mas, de repente, percebi tudo. Minhas entradas e saídas diferentes, meus horários, talvez minhas atitudes mais despreocupadas não tinham passado em branco aos olhares de nosso detetive predial. Pensei rápido que não podia perder a oportunidade, talvez a única na vida, de dar a cutucada, talvez há muito tempo esperada, mas nunca conscientemente percebida. Olhei com ingenuidade forçada para ele e respondi apenas:

- Não sei.

- Não sabe?

- Não.


Seus olhos mudaram de cor, juro a você que foi a impressão que eu tive. Éramos conhecidos como o casal 20, desde nosso casamento, morando no edifício em frente (quantos casais à beira do enfarte conjugal são socialmente vistos como casal 20...). Se nosso casamento não deu certo, virgem santa, que casamento daria? Não sei se foi isso ou se foi a estupefação de não ter conseguido acompanhar o desenrolar dos acontecimentos. Parecia que eu tinha burlado a sua vigilância!!!

Levantou-se da cadeira para abrir a porta do elevador. Ele nunca tinha se dado a esse trabalho. Afinal, ficar sentando era tão bom! Mas segurar a porta poderia ser a base para um prolongamento da conversa, foi o que percebi imediatamente e, claro, me preparei para cortar o papo ali mesmo. Mas, como lhe disse, não podia perder a oportunidade. Geraldo atacou:

- D. Eulalia, a senhora se separou? Olhar estupefato.

Respondi com a simplicidade de uma criança:

- Ué, há mais de um mês.

- Mas eu não sabia!

- E precisava saber?

- Ninguém soube!


Foi aí que entrei, pela primeira vez num juízo de valor explícito em relação a ele, pois nunca tinha lhe feito qualquer alusão a sua característica fofoquística:

- Ah, Geraldo, não se preocupe. Amanhã cedinho, antes mesmo de eu me levantar, todo o prédio já estará sabendo. E acrescentei: não que isso faça diferença.

Sorri delicadamente (lembro-me de meu sorriso até hoje), tirei também delicadamente a mão que segurava a porta e fechei o elevador. O sorriso que me levou até o oitavo andar deve ter feito um interessante contraste com o semblante do Geraldo. Meu último olhar ao fechar a porta percebeu a estupefação, a indignação de se sentir enganado, ludibriado, falido, considerado incapaz de ter percebido antes e, por que não dizer, incompetente no que julgava mais valoroso para ele.

O fato é que, no dia seguinte, ao sair do prédio de manhã, aconteceu o que eu já esperava: me senti uma bolinha de tênis em disputa de campeonato internacional. Já viram a platéia durante o jogo? Correm com a cabeça, de um lado para outro, acompanhando a jogada. Foi isso. Meu prédio era povoado por senhores aposentados que, não raro ficavam em pé, na portaria, aos grupos, batendo papo. Não sei por que não preferiam ir à praia, a apenas três quadras de distância ou ficarem na praça, com tantos bancos ao sol ou à sombra, a suas escolhas. Não. Ficavam em pé, na portaria. Com o correr dos anos, esses velhinhos foram enfeitando o céu e agora o edifício começa a ter outro perfil, mas, na minha lembrança, essas manhãs eram uma marca de nosso prédio.

Naquele dia, especialmente, quase todos tinham descido e a portaria estava enfeitada pelos moradores. Por que seria? Difícil deduzir? Ao sair do elevador, o burburinho habitual transformou-se, subitamente, em silêncio. Saí e como sempre, cumprimentei a todos, com o mesmo sorriso matinal de sempre e segui. Todos os pescoços acompanhando os meus saltos altos, até a entrada do prédio. Podia ver, pelo reflexo da vidraça (mal eles sabiam). Mas ninguém teve coragem de perguntar nada.

Com o passar dos dias, passei a me acostumar com os olhares acompanhantes e comecei a me esquecer deles. Perdeu a graça. Mas não parou por aí.

É natural que minhas saídas noturnas fossem mais freqüentes. Chegar mais tarde também. Aí, começou outro problema. Esqueci de dizer que Geraldo dormia solenemente. Solenemente! A garagem deve ser aberta pelo vigia e isso me obrigava a sair do carro, em plena madrugada, para tocar a campainha do prédio e... esperar, pois ele nunca estava na portaria. Se enfiava lá pelos cantos, sabe-se deus onde e demorava a chegar. A tal ponto que tive de levar o caso à síndica. Houve um dia que esperei mais de dez minutos. Conversa vai, conversa vem, Geraldo decidiu o caso com muita praticidade:

- É muito simples. A senhora, ao sair, me diga a que horas vai voltar. Assim, eu fico sabendo e presto atenção.

- Muito legal, Geraldo, está combinado. Então, de hoje em diante, eu, que não preciso dar satisfações a ninguém, lá pelas tantas, vou ter de interromper a minha noite para dizer, onde quer que eu esteja, que “me desculpe, preciso voltar para casa porque marquei com o vigia do meu prédio que chegaria às duas horas e trinta e dois minutos em casa. Ele está lá me esperando.” O que você acha?


Tentava deixá-lo desconcertado dessa forma.

Esse era o Geraldo. Que os deuses o tenham no Olimpo, bebendo as delícias de Baco.

Eu nunca tinha brincado em carnaval. Antes, por causa do internato e das férias familiares, sempre muito casmurras. Depois, por causa do casamento. Eu nem sabia se sabia pular carnaval. Sabia dançar e, segundo dizem, muito bem. Mas a dois, em festas, bailes, etc. Mas... carnaval? Essa eu tinha de experimentar. Não se pode morrer sem pular um carnaval carioca, ainda mais morando no Rio de Janeiro!

No primeiro carnaval depois do divórcio pensei nisso. A idéia bailou pelo ar, freqüentou os papos com amigos, mas pareceu não vingar. Claro, eu não queria qualquer carnaval, queria O carnaval. Não servia ir ver o carnaval em arquibancadas. Eu queria pular o carnaval, ser ativa, vivê-lo na raiz. Muito em cima da hora. Sem chance. Vamos deixar para o ano que vem. E tinha o problema da grana, pois eu estava bancando com muitas despesas, muitas dívidas, inclusive do divórcio, recém concretizado.

Sexta-feira carnavalesca. Nada. Um convite gentil para sair com amigos para um tradicional lugar gostosinho para dançar, restaurante-bar-dançante, à beira da Avenida Atlântica. Pista pequena, mas música variada, além de pratos muito bem preparados e dignos de nossa apreciação. Pena não existir mais. Saí bonitinha, com meu salto alto e pronta para uma noite com amigos. Perto da meia-noite, um outro amigo, Marcos, me chama pelo celular:

- Querida, quer desfilar pela Unidos do Cabuçu? Tem fantasia sobrando e precisam de participantes.

Me pegou de surpresa. Quanto é a fantasia? Quase nada, quinze reais apenas por uma blusinha e chapeuzinho de malandro. Ala do jogo de letrinhas. Jogo de letrinhas. Ótimo para uma lingüista, pensei sorridente! Calça jeans branca (eu tinha!), tênis branco (tinha).

- Quer?

- Quero. Compra a blusa para mim, eu pego com você amanhã.

- Amanhã coisa nenhuma, a Escola sai hoje, às quatro da manhã.


Convidei os amigos do bar, ninguém queria. Aceitei, me despedi deles e fui correndo para casa.

Claro, quem seria o vigia de plantão? Geraldo, of course. Entrei compenetrada, sem palavras, com aquele meu sorriso cotidiano que nunca lhes revelou nada, senão a delicadeza do convívio. Salto alto, saia semi longa, uma lady.

- Boa noite, professora (era como me chamava, tanto ele, quanto o Zé, o porteiro).

- Boa noite.

Subi sorrindo. Ele acha que vou me deitar, pensei. A essa altura, mais consciente do processo, driblar a cabeça do Geraldo passou a ser um divertimento para mim.

Entrei em casa, pensando se daria tempo para uma soneca. Não daria. Melhor buscar algo para vestir. Meu amigo tinha sido categórico: vestir uma blusa bem justa e pequena pois não há onde trocar de roupa e não pode aparecer nada por baixo da fantasia. Nós nos encontraríamos na rua... como eu iria? Abri o guarda-roupa confiante, vesti minhas blusas. Pelo que ele tinha descrito da fantasia, tinha de ser algo bem pequeno mesmo e muito justo. Na época, eu não tinha. Nada. Abri as gavetas, mexi em tudo. Uma hora da manhã. Não dava nem para pedir ajuda a alguma amiga. Nada feito. Fuxiquei tudo que tinha. Só sobrou mesmo aquele corpete. Puxa vida, aquele corpete que, na verdade, era um sutiã preto rendado, com cara de corpete. Não tinha outra coisa. Pode imaginar uma calça jeans branca, tênis e um corpete justíssimo preto rendado em plena sexta-feira de carnaval? Pois foi isso mesmo. Não tinha opção. Vesti. Me senti, na verdade, um pouco constrangida. Nunca tinha saído à rua de sutiã, mesmo incrementado. Me olhei no espelho. Não estava indecente, mas que estava com aparência comprometedora estava sim.

Vesti a calça, o tênis, o corpete e a minha cara de pau. Saí do prédio com o mesmo ar de lady com que entrara. Geraldo propositadamente ficou em silêncio, me olhou de cima abaixo e abaixou os olhos. O que ele deve ter imaginado enfeitou meus pensamentos. Riso por dentro, cara de professora invulnerável por fora. E o corpete preto enfrentando seus princípios.

Encontrei meus amigos. Felizmente estavam a minha espera e riram muito ao me verem. Marcos é um amigo e tanto. Disse logo que eu já estava fantasiada... e que fantasia! Pena não ter tirado uma foto. Gostaria de vê-la depois de tanto tempo. Vesti correndo a blusa da Escola, pus o chapéu e já me transformara em outra pessoa, foliã novata, pronta para o trote.

Marquês de Sapucaí. Essa parte, não posso descrever. Não tem como. Quem desfilou sabe o que é. Você descobre que sabe sambar ali. A passarela, em si, mexe com seus pés. A alegria é interna, passa num segundo, mas carimba a alma, numa verdadeira confirmação de cidadania carioca, enfim, reconhecida e consagrada. Inesquecível.

É claro que o desfile atrasou. Naquela época, ainda atrasava. A Escola não saiu às quatro. Saiu às seis, acabou em torno das sete e voltamos exaustos, depois de uma noite de muita alegria e diversão. Entrei no prédio perto das dez da manhã. Geraldo não poderia ter ido dormir. Com certeza, estava esperando o resultado daquela noite pecaminosa. Esperaria ver em minha expressão, provavelmente as marcas da noite, quem sabe bêbada, um caso perdido. Entrei fantasiada, bem diferente do que saíra. Estava inteira, só tinha bebido refrigerantes, meu rosto transcendendo a alegria da pureza carnavalesca. Na boca um bom dia cristalino, pleno, feliz. Ele, perplexo. Eu sentia isso em cada célula de minhas retinas. Na verdade, perceber esses impactos passara a ser uma diversão para mim. E esta noite tinha sido esplendorosa nesse sentido.

Entrei em casa e me lembrei que tinha marcado manicure. Faltava meia-hora para estar no salão. Pus um vestidinho bem simples, uma sandalinha e saí voando, apenas com a carteira e a chave nas mãos. Dona de casa. O homem ainda estava na portaria cochichando com o Zé. Os dois me olharam avassaladores. Sorri, desejando-lhes bom dia. Era evidente e desconcertante a minha inteireza, a minha singeleza.

Em menos de doze horas, começando às 22 horas do dia anterior, Geraldo tinha configurado em sua mente a dama e a vagabunda, a carnavalesca e, finalmente, a dona de casa.

Ao voltar da manicure, a única vizinha com quem eu realmente conversava mais no prédio comentou, quando nos encontramos no elevador:

- Ouvi o Geraldo dizer que, depois que você se separou e mudou de vida, pode-se esperar de tudo.


Sorri. Pirei o homem, coitado. E brindei à vida.

Passei o resto do carnaval descansando, bem quieta, no meu canto, indo à praia e curtindo preguiça. Por dentro, o coração em festa.